“Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao andar.” | Antonio Machado, poeta espanhol
Muito já se falou sobre calçadas, aqui e em outros lugares, por mim e por outros. Então, desta vez vou fazer diferente e apenas tentar sintetizar todas as situações a que estamos expostos quando caminhamos por aí. Uma das premissas básicas do jornalismo é a observação e apuração dos fatos. O que descrevo abaixo é fruto de pura observação dos fatos. Se duvida, dê uma volta por sua cidade e constate por si mesmo.
Tudo que encontramos pelo caminho
Rampas para entrada de carros desnivelando o caminho. Buracos, pequenos, grandes, rasos, profundos, enormes. Lixo. Raízes. Placas de sinalização. Postes, muitos postes. Floreiras. Árvores largas. Grandes arbustos. Vasos largos. Placas de propaganda. Barracas de camelô. Entulho. Mato, alto, baixo, muito mato. Carros em cima do passeio. Motos em cima do passeio. Já citei buracos?
Canos que jogam água em nossos pés. Canos que jogam água na nossa cabeça. Portões que abrem pra fora. Portões que excedem a área da casa e invadem o passeio. Cocô de cachorro. Telhados fora da linha das edificações e que jogam água na nossa cabeça. Pisos muito lisos. Pisos nada lisos. Já mencionei rampas de carros?
Barro. Pedras. Lixeiras. Poças. Reformas que isolam a calçada com aquele cordãozinho e jornal. Degraus. Caçambas de entulho. Vasos que caem do parapeito na nossa cabeça (é... acredite isso ainda acontece). Pessoas em situação de rua deitadas e seus pertences. Orelhões que já não servem mais para nada. Água com sabe-se lá o quê, escorrendo dos quintais. Muros caídos ou pior, prestes a cair. Rampas acessíveis fora de padrão. Pisos táteis que não levam a lugar nenhum. Recuos para estacionamento menores do que o necessário. Estacionamentos feitos sobre a passagem dos pedestres. Produtos de comércio expostos no passeio do pedestre. Galhos caídos. Material de construção (blocos, areia, pedras, madeiras e outros). Tapumes. Já falei do lixo?
Área do passeio isolada por obras. Placas de comércio, objetos de comércio, a calçada é o comércio. Carros com a porta aberta. Pessoas que lavam seus carros e fazem da calçada seu lava-rápido. Galhos de poda. Andaimes ou escadas de obra. Placas e outros objetos de propagandas. Mesinhas de bares, lanchonetes, padarias e restaurantes. Toldos muito baixos. Toldos que vão até o chão. Luzes automáticas que acendem de repente na nossa cara. Câmeras particulares que nos filmam sem nosso consentimento (cuidado para não virar piada na internet!). Frutas e folhas no chão que nos fazem escorregar. Restos de oferendas religiosas. Homens que fazem da calçada sua oficina. Móveis abandonados. Aclives, declives, desníveis. Guaritas de guardas de rua. Sacos de lixo, lixo espalhado, muitos sacos de lixo. Restos de obra. Restos de mudança. Restos de restos. Plantas que saem das casas e invadem o passeio. Já lembrei os carros parados sobre a calçada?
Tampas abertas de bueiro, de telefonia, de energia, de gás, água etc... Homens de concessionárias trabalhando, que isolam a calçada. Viaturas (fora de urgência) sobre a calçada. Muretas construídas no caminho. Cercas vivas que cresceram demais e ninguém poda. Valetas de escoamento de água das casas. Cachorros que põem o focinho para fora dos portões e avançam para morder ou que latem estridentemente ao passarmos. Fios de energia ou telefone caídos. Bonecos infláveis enormes. Já falei em cocô de cachorro?
Calçadas deformadas, desfiguradas, estropiadas, abandonadas. Calçadas estreitas. Calçada nenhuma.
Esqueci alguma coisa? Tenho certeza de que sim. Diante de tudo isso, caminhar é uma aventura. Se mesmo assim você costuma andar por aí, porque precisa ou porque gosta, parabéns! Você pode se considerar uma pessoa de coragem.
Jogo dos 5 erros: na imagem acima podemos ver alguns erros cometidos contra a mobilidade a pé. Você consegue encontrá-los? Dica: o último não está explícito
Até um cachorro sabe o que é uma calçada. Desde crianças somos ensinados que a rua é para os carros e a calçada para gente...mas ai de nossa inocência. Esses verdadeiros canteiros que apenas por costume chamamos de calçada, se tornaram tudo menos o que deveriam ser. De caminho vieram se tornar depósitos e espaço para tudo que sobra entre as casas e a rua.
Carros em movimento, homens trabalhando e carro estacionado. Por onde você arrisca passar?
Jogo da imitação
O ser humano age muito por imitação, para o bem e para o mal, veja só: ninguém joga lixo no chão da avenida Paulista, logo, o cidadão que passa por ali não jogará também por medo de ser o diferente, o destoante, é o medo do olhar de reprovação; em um bairro mais afastado todos jogam entulho em certo terreno baldio, então o cidadão se acha no direito de jogar também, perde-se a vergonha, o medo da rejeição social.
Por esse mesmo raciocínio, quando temos uma calçada em mau estado as pessoas deduzem automaticamente que aquele não é um espaço importante, o local perde seu status social e um efeito dominó se inicia, um cidadão começa e os outros seguem: se um motorista estaciona sobre a calçada logo vem outro atrás e faz o mesmo; se um morador faz uma rampa para entrada do seu carro, o vizinho entende que pode fazer o mesmo; se o açougue coloca seus dez sacos de lixo fechando o caminho, o morador logo acha que pode colocar seus sacos de entulho na calçada também.
Da mesma forma, quando as pessoas veem um espaço bem cuidado, elas tendem a cuidar melhor e evitam desrespeitar as normas de convívio social, se em determinado local o espaço de caminhar é bem cuidado os cidadãos tendem a mantê-lo assim. Se todos respeitam uma calçada em determinado lugar, o sujeito se sente compelido a seguir a tendência.
Caminhão de entregas estacionado errado, o corpo do veículo está sobre a área de passagem do pedestre. Por consequência, colocando as pessoas em perigo
O solo sagrado
Se todos entenderem o que é uma calçada, sua importância, então talvez possamos um dia reverter essa situação ridícula e fazer das nossas cidades um local agradável para caminhar. A calçada é uma invenção, uma convenção, na verdade o mundo inteiro sempre foi nosso local de caminhada, qualquer solo sempre foi um espaço para caminhar. Mas já que nos propomos a inventá-la, o mínimo que se espera é que demos a ela sua utilidade essencial, que é de um espaço para andar. A calçada deveria ser tratada pelo que é: um solo sagrado!
Resposta do jogo dos 5 erros:
1. Calçada muito estreita
2. Poste toma todo o espaço
3. Rampa desnivelando o passeio
4. Lixo impede a passagem
5. Portão que abre para fora
E você, achou outros?
“Caminhante. São as tuas pegadas o caminho. E só isso.” A mudança vem dessa lembrança.
Compartilhe com alguém que não sabe o valor de andar a pé. E continue caminhando.
*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.
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