Pedestre: O Poder Público vs O Povo

Em artigo, José Osvaldo Martins discute a inércia dos gestores públicos em atender às necessidades de quem usa os pés para circular nas cidades

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Osvaldo Martins  |  Postado em: 18 de junho de 2021

Caminhão barra a passagem de pedestres. Tudo norm

Caminhão barra a passagem de pedestres. Tudo normal?

créditos: José Osvaldo Martins


O próprio título deste artigo já parece uma contradição. Público é algo pertencente a um povo, logo o poder público seria o poder do povo. Mas deixando isso de lado, para não confundir, vamos nos ater ao prático: poder público é o conjunto de serviços e administração da sociedade pelo governo e povo é o coletivo de pessoas que sustentam e se valem dessa estrutura.


Onde quero chegar com isso? Falo sobre a falsa impressão que o cidadão tem de que esse aparelho funciona perfeitamente. E como colocar toda sua fé em que o governo pode resolver todos os problemas beira a ingenuidade. Sendo sinceros, todos sabemos que esse tal poder público é ineficiente para dar conta de todas as demandas da população. Não só ineficiente, é também lento e intencionalmente burocrático.


O Poder
Sim, ele funciona, mas é um trem a vapor em tempos de carros voadores. Não poderia ser diferente, o número de pessoas numa cidade sempre será maior do que o sistema administrativo desta mesma cidade, então o número de funcionários, desde políticos, até secretários, fiscais, auxiliares, engenheiros, técnicos, etc... nunca é suficiente para resolver todas as variadas e complexas questões de administração pública, matemática básica. Apesar de haver sim, trabalhadores bem intencionados e preparados, eles não dão conta de identificar e resolver todos os problemas que surgem numa cidade. Há de ser mentira? Quem nunca viu um caso de irregularidade ou infração e não havia ninguém ali para fiscalizar? Quem nunca fez um pedido para algum órgão público e lhe foi negado?


A administração pública muitas vezes é vista como um adversário a ser vencido por nós, quando na verdade deveria estar a nosso serviço.


Agora tragamos esta questão da ineficiência, para o nosso assunto, a mobilidade. A mobilidade (que não seja a do carro) é um dos mais visíveis e concretos indicadores da incompetência do poder público. É negligenciada e ainda vista como desimportante, algo menor, não urgente. Veja os ônibus lotados, a falta de ciclovias e as calçadas ridículas, então você vai ter certeza de que mobilidade ativa não é uma prioridade para o estado. Dê uma volta, próximo a alguma prefeitura/subprefeitura, num raio de 500 metros e você verá quantos casos de desrespeito a mobilidade estão logo ali, pertinho da sede administrativa.


Se o governo geralmente não consegue prover sequer os itens considerados básicos, como saúde, educação, emprego e saneamento a todos, que dirá de mobilidade de qualidade?! Aliás, mobilidade deve ser elevada a item de prioridade máxima assim como estes outros, já que é o meio que leva a todos eles.


Algumas pessoas costumam ter muita fé de que o poder público vá resolver todos os problemas. As pessoas que atuam com mobilidade são algumas delas, apostam todas as suas fichas em cobrar o governo e subestimam ações que tragam o cidadão para o seu lado.


Devemos pensar, a quem interessa uma cidade boa para se caminhar? Para o povo. Dessa forma temos que investir mais em elucidar, informar, conscientizar e trazer o povo para o assunto da mobilidade a pé. Se não trouxermos os cidadãos para a questão, nunca haverá uma cidade caminhável. Pode-se fazer a obra que fizer, baixar a lei que quiser, vir a norma ou estatuto que vier, sem adesão da população as coisas continuarão do mesmo jeito. O governo pode até arrumar e padronizar as calçadas, mas quem vai utilizá-las e mantê-las são as pessoas. O governo tenta organizar, mas quem faz a cidade de verdade é o povo.

                                                       

Loja com recuo para estacionamento menor que o necessário, fazendo que os carros invadam a área de circulação. O pedestre não se incomoda Foto José Osvaldo Martins

 

O Povo
A Prefeitura de São Paulo deu início em fins de 2019  a um projeto de revitalizar/padronizar as calçadas em vias de alta circulação, obra de muita boa vontade. Mas, veja só, muitos cidadãos acharam isso um absurdo dado o nível de entendimento que tem do tema, muitos ficaram horrorizados e diziam coisas como: “Pra que gastar dinheiro com isso? Tanta coisa pra fazer na cidade e a prefeitura gastando com calçada!”

Vale uma observação, como as pessoas não tem a mínima ideia do que seja mobilidade, costumam achar uma barbaridade arrumar uma calçada. Na cabeça desse povo a calçada deve servir como rampa de estacionamento, espaço de exposição de produtos, depósito, tudo, menos para caminhar, que ao ver deles é apenas uma consequência deste espaço livre.  E dito isto, claro, muitos vão só querer adiantar o próprio lado, então quando a prefeitura estabeleceu um padrão, teve muita gente tiririca da vida, pois isso atrapalhou os seus negócios. Veja como pensa o cidadão médio sobre mobilidade nesta notícia e ateste o que digo: Moradores reclamam que Prefeitura faz obras em calçadas que não precisavam de reformas.


Se você leu o artigo indicado, o futuro é previsível, se não houver fiscalização (o que é quase certo) em pouco tempo os moradores, comerciantes e empresas vão refazer estas calçadas conforme julgam adequado, entenda-se conforme seus interesses. Então o que adianta cobrar o poder público se o cidadão mesmo não entende o que se propõe?! Logo tudo vira uma bagunça de novo, tão certo como a luz desse dia.


O brasileiro acha que tudo é culpa do governo e que suas ações não tem nenhuma relação com a realidade. Um exemplo clássico: a prefeitura vai lá faz obras, arruma e limpa o rio, daí as próprias pessoas que reclamam das enchentes vão e jogam lixo no chão ou até no rio mesmo.


O governo não pode ser responsabilizado por todos os problemas do mundo, a ação individual faz toda a diferença em como uma cidade se construirá. Dessa forma, em vez de só querer atingir esse sujeito imaterial e abstrato que é o governo e focar mais nas pessoas comuns é interessante a qualquer tipo de ativismo, porque mudar as pessoas muda o mundo.


Como o estado não pode nem consegue resolver todas as nossas demandas, ações que levem o cidadão a conhecer e agir quanto a mobilidade devem constar na agenda de qualquer grupo ativista que se preze. Não sou nenhum gênio, mas exponho abaixo um problema e uma possível ação, apenas a título de exemplo.

                                           

Calçada padronizada pela prefeitura. Pouquíssimo tempo depois da reforma, lanchonete coloca seu toldo para fora, exatamente sobre o piso tátil que guia pessoas com deficiência visual. Sem adesão da sociedade não há mudança. Foto: José Osvaldo Martins

 

O Bom e o Mau comerciante
Comércio estão espalhados por todos os lugares e cumprem indispensável função social, já que alimentam a cidade de tudo que ela precisa. Da mesma forma, tem um impacto no cenário urbano evidente. Os comércios criam e transformam a cidade, porém não conheço nenhum comerciante que sequer tenha ouvido falar em mobilidade ativa. Já pensou se pudéssemos explicar a importância da mobilidade a pé para essas pessoas? Se as trouxéssemos para o nosso lado, imagine o quanto a cidade ganharia.


O mau comerciante
Este é um sujeito que costuma ser individualista, o que importa são os fins, não os meios. De visão estreita, a sobrevivência a qualquer custo é sua meta e o lucro seu único objetivo. Só gosta dos seus e daqueles que podem lhe dar algo. É esse tipo que, por consequência de seu modo de pensar, vai pôr as mesas, sua placa de propaganda e até alguns produtos na calçada, bem ali onde as pessoas precisam passar. Esse ilustre dono de comércio acha que a calçada é sua e, portanto, pode usá-la como lhe convém, tente convencê-lo de que não é isso e você provavelmente vai ouvir uma resposta nada educada.  Ele geralmente não constrói rampa de acessibilidade na entrada de sua loja, mas se tiver que fazê-lo, será com inclinação errada ou para fora do seu estabelecimento, isso claro, pra gastar o menos possível, afinal ele acha isso uma bobagem.


O mau comerciante não se importa com a opinião ou necessidades das outras pessoas.É ele que, querendo ter um estacionamento na sua loja, vai fazer um recuo pequeno que acaba por deixar os carros sobre a passagem dos pedestres, é ele que vai tomar todo o espaço de circulação com o lixo colocado pra fora, se a área de passagem estiver esburacada ele não vai se importar mas se fizer alguma reforma será alguns remendos apenas por estética, se alguém for atropelado em frente sua loja não chegará nem a pensar que isso pode ter relação na forma como conserva sua calçada, se um cliente parar o carro em cima do passeio ele achará perfeitamente normal. Esse tipo costuma ser um alienado e a única coisa que o faz mudar de ideia é a possibilidade de punição, quando aperta no seu bolso aí ele toma uma atitude. Pobre desse rapaz, que não evolui e ainda atrapalha o caminho dos outros. Esse comerciante, com seu estilo predador, tem grandes chances de crescer com seu negócio a curto prazo, mas como não quer se adaptar a vida em sociedade, costuma desaparecer e entrar em extinção.


O bom comerciante
É aquele que sabe que precisa de lucro, pois é esse o objetivo do seu negócio. Mas entende que a vida em sociedade é muito mais que isso, que é uma troca, então está sempre atento as tendências, ele muda e se adapta. É o cara que sabe que qualquer um que passe em frente a sua loja é um cliente em potencial, por isso evita destratar quem quer que seja, procura não atrapalhar a vida das pessoas, ele ouve e escuta. É ele quem vai deixar sua calçada sempre livre, plana, limpa e bem cuidada. Se alguém cai em frente a sua loja, independente se é culpa sua ou não, vai acudir. É o cara que se você explicar a importância da mobilidade a pé vai ouvir interessado, querer entender e ficar mais a par do assunto. Esse é um dos caras que dali mesmo, no seu cotidiano vão fazer uma cidade melhor. Esse é um tipo de pessoa que podemos trazer pra nós e que vai fazer a diferença.

 

Adote uma calçada
É para este último que faço uma proposta: Adote uma Calçada! Pode ser a sua mesmo. Mas como assim? Dirão alguns “mas isso já é de responsabilidade do dono/locatário do imóvel!”. Explicando: é bem comum uma calçada precária e ninguém olha pra isso com carinho, então digamos que se o comerciante perceber que isso pode ser um valor agregado à imagem do seu negócio e atrair a atenção das pessoas, será interessante para ele manter o passeio bem cuidado. Com isso, pode-se melhorar consideravelmente a qualidade dos espaços urbanos. Se esse cara mantiver o seu trecho bem cuidado e dentro das normas, porque não colocar uma placa na entrada dizendo algo do tipo Senhor pedestre, esta loja cuida e conserva esta calçada para sua maior comodidade. É a mesma ideia do adote uma praça, onde algumas empresas cuidam do espaço em nome de propaganda e boa imagem. Pode parecer bobagem, mas imaginem o impacto que isso pode ter... O lojista ganha respeito, o pedestre ganha qualidade, as pessoas passam a reparar nas calçadas e fachadas, por consequência pode haver um efeito dominó e outros comerciantes dali gostarem ou sentirem-se pressionados a aderir a medida. Todos saem ganhando. É marketing aliado à responsabilidade social, simples, barato, prático e objetivo.


“Eduque as crianças e não será preciso punir os homens”, diz um ditado popular. Podemos adaptar para, conscientize as pessoas e não será preciso punir os cidadãos.


Transformando o local, atinge-se o global. Continue caminhando.

 

*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.

 

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