'Lei Brasileira de Inclusão ainda não chegou às ruas e calçadas do país'

Relatora da LBI e de várias ações pelos direitos da pessoa com deficiência, senadora Mara Gabrilli fala de sua trajetória e dos desafios em promover inclusão e mobilidade

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Regina Rocha/ Mobilize  |  Postado em: 16 de junho de 2021

Mara Gabrilli, senadora em defesa das pessoas com

Mara Gabrilli: em defesa das pessoas com deficiência

créditos: Divulgação/Mara Gabrilli

Para marcar os 10 anos do Mobilize, temos entrevistado pessoas que colaboram ou de algum modo contribuíram para os conteúdos do portal nesse período. A senadora Mara Gabrilli é uma delas; desde o início, ela mantém aqui o blog Direito de Ir e Vir, onde avalia as condições de acessibilidade nas cidades brasileiras. A seguir, acompanhe esta conversa onde Gabrilli fala de sua história, da militância política pelos direitos da pessoa com deficiência e da batalha que temos a enfrentar pela frente, sobretudo sob pandemia, para a construção de cidades justas e inclusivas.      


Como foi seu começo na luta pelos direitos da pessoa com deficiência e dos pedestres em geral?
Iniciei minha trajetória antes de entrar para a vida pública. Em 1997, alguns anos após sofrer o acidente de carro que me deixou tetraplégica, fundei uma ONG para fomentar pesquisas para a cura de paralisias e apoiar o paradesporto. Durante essa atuação no terceiro setor, percebi que as pessoas com deficiência não conseguiam acessar nenhum serviço nas cidades, porque estas eram repletas de barreiras. Não tinha calçada, transporte acessível, e os serviços de maneira geral não eram preparados para atender a diversidade humana. Alguns anos depois, pensei num projeto de secretaria para esse público e entreguei ao José Serra, que era prefeito da capital paulista [2005-2006], e ele acabou me convidando para comandar a pasta.

 

E como foi para promover políticas de inclusão num órgão da administração pública?
À época, palavras como acessibilidade e inclusão eram pouco faladas no Brasil e a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência (SMPED) tinha uma função primordialmente didática: ensinar a importância da acessibilidade em todas as secretarias. Entre outras ações, nosso trabalho resultou no aumento da frota de ônibus adaptados da cidade, que de 300 saltou para 3.000, além da reforma de mais de 400 km de calçadas, inclusive as da Avenida Paulista, que se tornou modelo de acessibilidade na América Latina.


Da secretaria para cá nosso trabalho foi amplificado. Hoje há inúmeros órgãos para gerir políticas de inclusão nas cidades brasileiras. Depois disso, fui deputada federal por dois mandatos e atualmente estou senadora, além de perita no comitê da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, este último um cargo independente e voluntário.

  

O Mobilize Brasil está completando dez anos, e a senhora colabora com o portal desde o início, não é mesmo? 
Sim, conheci o Mobilize bem no início, quando Ricky [Ricky Ribeiro], fundador da iniciativa, fez uma visita ao meu escritório em São Paulo. Identifiquei-me prontamente com a proposta do portal e todas as suas ações em prol da mobilidade urbana sustentável. Tenho muito respeito pelo trabalho do Mobilize porque, além de ensinar a sociedade, norteia nossas políticas públicas de mobilidade.


Nesse período, quais foram os principais avanços e retrocessos na mobilidade e na acessibilidade no Brasil?
Podemos dizer que calçadas fazem parte tanto dos avanços quanto dos retrocessos. Avanços, porque hoje as prefeituras são obrigadas a comandar o processo de manutenção e reforma do passeio público.


A responsabilidade pelas calçadas deve seguir a mesma lógica da obrigação dos municípios quanto aos postes de iluminação: a “entrega” do serviço no domicílio não gera para o morador a responsabilidade pela sua conservação. Qualquer dano neste ou em outro mobiliário urbano, bem como a pavimentação ou a calçada, é exclusivamente de responsabilidade da Prefeitura.

 

E isso é um avanço da nossa legislação, que conseguimos alcançar com a aprovação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015). A LBI alterou o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) para exigir da União, por iniciativa própria e em conjunto com os estados, o Distrito Federal e os municípios, a promoção da melhoria das condições das calçadas. De acordo com essa mudança, todo Plano Diretor de cidades com mais de 20 mil habitantes deve conter um plano de rotas acessíveis “que disponha sobre os passeios públicos a serem implantados ou reformados pelo poder público". Esse plano e/ou código é elaborado pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo, nas câmaras municipais.

 

O retrocesso, infelizmente pode ser constatado no não cumprimento dessa legislação, pois sabemos que o poder público ainda teima em não liderar a reforma e manutenção de calçadas.


Podemos perguntar: a Lei Brasileira de Inclusão já chegou às ruas, calçadas, semáforos e ao transporte público das cidades? Qual o maior desafio para que isso de fato aconteça? Quando penso na construção da LBI, olho para trás e me orgulho do que conquistamos – por mais incipiente que este movimento ainda pareça. Falamos de uma legislação moderna, ancorada na convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência, e que foi construída com a intensa participação da sociedade civil. Ou seja, o lema do nosso segmento "Nada sobre nós sem nós" foi levado à risca. Agora, a verdade é que tanto os gestores públicos, quanto a própria sociedade precisam entender a dimensão dessa lei. Precisam se aprofundar para cobrar e tirá-la do papel! Essa é uma jornada ainda a percorrer.

 

Em SP, cidade que a elegeu senadora, o que mudou para a pessoa com deficiência, e para a condição do pedestre e também do usuário do transporte público?
Desde que iniciei minha vida pública vejo a cidade se transformando – não completamente da forma como gostaríamos, mas o movimento acontece... Hoje não temos uma frota de ônibus 100% acessível, mas temos uma frota razoável (cerca de 70%) se compararmos a outras cidades que pecam muito nesse sentido. O metrô de São Paulo é um serviço bom para a pessoa com deficiência, mas o serviço da CPTM ainda é repleto de barreiras. Ou seja, temos bons e maus exemplos ainda.

 

Na pandemia, como as pessoas com limitações de movimentos, como idosos e cadeirantes, vêm se deslocando pela cidade? Houve uma perda das condições de mobilidade?
As pessoas com deficiência foram jogadas à margem nessa pandemia. Podemos dizer que fomos os últimos colocados na fila. Faltou suporte para atender às vulnerabilidades desse público. Pessoas com deficiência física, por exemplo, não foram lembradas no momento em que a orientação máxima da OMS é o isolamento social e a higienização de mãos. O que faz um tetraplégico que precisa das mãos de outra pessoa para fazer tudo, inclusive tirar um cabelo dos olhos? Eu mesma, tomando todos os cuidados, fui contaminada pelo vírus, que foi transmitido por uma de minhas cuidadoras. No caso de pessoas com deficiência visual, o que fazer quando sua única orientação para se locomover é por meio do tato?

E as pessoas com deficiência intelectual, que não foram pensadas em momento algum no sentido de uma comunicação mais simples e didática?


Ainda em relação à difusão de informações, também precisamos falar sobre aqueles que não ouvem e se deparam com o descaso na ausência de legenda e Janela de Libras que não tem sido incluída em diversos programas da televisão. Tenho brigado muito por isso, inclusive conseguimos fazer a TV Senado adotar a Janela de Libras e mais recentemente fazer o veículo incluir o recurso na transmissão da CPI da Covid. Essas são algumas conquistas, mas ainda falta muito para que a televisão brasileira de uma maneira geral atenda a diversidade.

 

São inúmeras as barreiras enfrentadas nas cidades pelas pessoas com deficiência, e infelizmente pouco são os cuidados tomados para atender a esse público. No Senado, ainda no ano passado, apresentei um pacote com diversas medidas de proteção aos mais vulneráveis. Alguns de nossos projetos foram aprovados e tramitam na Câmara dos Deputados. Como membro do comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, também alertei sobre diversas violações de direitos humanos na pandemia. Nossa provocação inclusive originou um documento com as diretrizes a serem adotadas pelos 'estados partes' signatários da convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009.

 

A propósito, como é ser uma parlamentar com deficiência? As casas do Legislativo estão preparadas para receber representantes que sejam cegos, surdos, cadeirantes, ou que tenham qualquer restrição de mobilidade?

Nestes 20 anos de trajetória pública, vejo que muitos espaços por onde passei como a “primeira tetraplégica” se transformaram para melhor para outras pessoas com e sem deficiência. Para exercer todos os cargos que passei, os espaços precisaram ser acessibilizados. E isso não representa acesso para a Mara, mas para todos os brasileiros.


Desde 2011, quando assumi o cargo de deputada federal, batalhamos muito para que a Câmara dos Deputados se adaptasse para todo e qualquer cidadão. Nesses 10 anos, o espaço da Casa, que por décadas não teve acessibilidade para receber uma pessoa em cadeira de rodas, passou por uma ampla reforma na mesa diretora e nas tribunas do plenário.


A Comissão de Acessibilidade da Câmara dos Deputados também implantou um sistema de votos com uma tecnologia que permite votar só com o movimento do rosto. Um investimento justo, afinal estamos falando da Casa onde foi aprovada a Lei da Acessibilidade (Lei 10.098 de 2000).

 

No Senado, onde atuo hoje, até 2016 as senadoras tinham de sair do plenário e usar o banheiro do restaurante ao lado porque a única opção era o banheiro masculino, construído em 1960. Felizmente isso mudou e com a minha entrada os acessos também, com a reforma feita no plenário e nas comissões, além de intérprete de Libras, que antes não tinha na TV Senado. Ou seja, minha deficiência foi uma alavanca para criar acessos onde não existia.


Lembro-me também da Câmara Municipal de São Paulo, que não tinha acessibilidade e nós conseguimos reformar não só a mesa diretora do plenário, para que qualquer cidadão pudesse discursar, como todos os outros espaços do Palácio Anchieta. Dois anos depois, quando assumi o cargo de vereadora, a Câmara já estava acessível para cegos, cadeirantes, idosos, anões... enfim, para todos os cidadãos que votam, pagam impostos e têm o direito de reivindicar direitos e acompanhar o trabalho de seus representantes.


Olhar para tudo isso e ver o quanto transformamos - tanto nas cidades quanto na vida das pessoas - é o que dignifica a razão por um dia eu ter quebrado meu pescoço. Eu estou de passagem e sou apenas um instrumento para que o Senado e tantos outros locais se tornem acessíveis para a diversidade humana.

 

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Comentários

Irailton Moura de araujo - 29 de Junho de 2021 às 18:28 Positivo 0 Negativo 0

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Irailton Moura de araujo - 29 de Junho de 2021 às 18:27 Positivo 0 Negativo 0

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Irailton Moura de araujo - 29 de Junho de 2021 às 18:27 Positivo 0 Negativo 0

O que tenho pra comentar e simples o nosso Brasil a nossa política meu ponto de vista perde muito tempo em tentar resolver o problema da corrupção.de que até mesmo .estes programa de inclusão trazer conforto a quem trabalhou a vida toda.so .muita fo

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