Cristina Albuquerque é gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil. Ela é graduada em engenharia de produção, com mestrado em sistemas de transporte, ambos pela UFRGS, e trabalha há mais de dez anos apoiando cidades nos desafios do transporte urbano.
Cristina integra o Comitê Gestor do Centro de Excelência em BRTs e mais recentemente tem atuado em projetos para a transição elétrica da frota de ônibus do país.Nesta entrevista, ela discute a crise no transporte público e aponta soluções, que envolvem a criação de faixas e corredores exclusivos para ônibus, a mudança na forma de gestão dos transportes e a necessidade de novas fontes de recursos para manter as frotas de coletivos em circulação, se possível integradas aos novos modos de deslocamento, como os carros de apps e as bikes compartilhadas
Há dez anos, o Ipea havia constatado que o transporte público estava perdendo passageiros para as motos, principalmente. A mesma constatação foi feita desde os anos 1990 pelas pesquisas da NTU. E essa "fuga de passageiros" se agravou nos últimos anos por vários motivos, além da pandemia. Como esse processo tem repercutido no WRI. Vocês têm discutido o assunto?
O transporte coletivo, da maneira como é estruturado hoje nas nossas cidades, tem como única fonte de recurso a tarifa paga pelos passageiros. Então, se você tem menos passageiros, a tarifa tende a ficar mais alta por ser a única fonte de recursos, o que faz com que mais pessoas migrem para outras alternativas. E o pior é que o sistema de transporte vai perdendo cada vez mais a qualidade, que é a maneira de diminuir os custos: o corte de algumas linhas, a diminuição da oferta de ônibus nessas linhas, o que gera mais lotação, e que faz com que menos pessoas queiram usar os ônibus. E nós não estávamos conseguindo sair desse círculo vicioso. E para piorar, como as pessoas estão deixando o transporte coletivo, os congestionamentos nas nossas cidades também aumentaram muito nesses últimos anos, pelo crescimento da motorização, que também foi estimulado por vários programas, como a isenção de IPI, que facilitam o acesso a carros e motos.
Como resultado disso, os ônibus levam mais tempo para percorrer os mesmos trajetos, agora com menos passageiros - o que também contribui para aumentar o custo operacional. Então, de alguma maneira, digamos que o Brasil estava, ou ainda está, subsidiando o transporte individual em detrimento do transporte coletivo.
Mas, pensando socialmente, o transporte coletivo é muito mais mais econômico, não é isso?
Sim, com certeza. Para garantir o acesso das pessoas, de todas as pessoas, às oportunidades oferecidas pelas cidades, aos empregos, e também ao sistema de saúde, acesso a parques, às áreas de lazer, o sistema de transporte coletivo é o meio mais importante na vida das nossas cidades. O embasamento dessa escolha pelo transporte coletivo está previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, que defende a priorização dos transportes ativos e depois os coletivos, em detrimento do transporte individual motorizado.
Na prática, as pessoas esperam muito tempo nos pontos e perdem mais tempo ainda nas viagens, que são feitas em ônibus frequentemente sujos, sem a manutenção adequada. E isso faz com que mais gente esteja fugindo do transporte coletivo e buscando os carros e motos de aplicativos ou mesmo as bicicletas. Qual seria a proposta para este momento aqui no Brasil, considerando a pandemia e pensando em que nós teremos, provavelmente, outras crises sanitárias, segundo prevêem os epidemiologistas? Já há alguma discussão no WRI em relação a esse assunto? Qual seria o panorama ideal para o transporte público coletivo nesse futuro próximo?
Nós temos discutido bastante esses pontos e vemos três momentos para sair desta crise. Primeiro é o momento de sobreviver, para que consigamos manter os sistemas de transportes públicos operando em nossas cidades, de forma a evitar a retirada de linhas, porque isso só agrava o problema. E temos também este momento de epidemia, que coloca o desafio de garantir uma sobrevivência para o sistema de transporte. A crise foi agravada pela pandemia, mas ela já estava presente nos últimos dez anos.
Soluções existem e a primeira delas é oferecer a prioridade de circulação ao transporte coletivo. Se conseguirmos tirar o transporte coletivo dos congestionamentos, já melhora muito os tempos de viagem, e não necessariamente precisaríamos aumentar a quantidade de ônibus. A simples delimitação de faixas exclusivas, que é uma medida de baixo custo, já ajudaria o transporte a recuperar parte de sua eficiência.
Aqui no WRI, nós estamos trabalhando em três grandes pilares: O primeiro é a garantia de acesso para todos, como forma de permitir que as pessoas tenham acesso às oportunidades oferecidas pelas cidades, com um sistema eficiente, seguro, de boa capilaridade, com veículos de baixas emissões. Um segundo pilar envolve a reforma e estabilidade financeira do sistema de transportes. Temos que encontrar formas de financiamento de longo prazo para renovar a infraestrutura, mas também precisamos ter recursos para a operação, de forma que a gente não conte apenas com os recursos da tarifa paga pelos passageiros, mas que a gente consiga contar com o recurso mais seguro para qualificar esse sistema. E temos um terceiro pilar, o de governança, que é um ponto que a gente ainda precisa avançar bastante no Brasil, principalmente nas grandes cidades, para contarmos com sistemas integrados em nível metropolitano. E que seja um sistema multimodal, sem essa competição entre os diferentes modos, para que eles se integrem, de forma a facilitar e melhorar a vida das pessoas. Nosso foco tem que ser as pessoas e as formas como elas desejam se deslocar nas cidades. Claro que a questão técnica é muito importante, mas temos que buscar esse planejamento do sistema de transporte coletivos com base no desejo das pessoas, e que elas sejam o centro do nosso planejamento.
Eu gostei muito dessa afirmação, de pensar a partir da vontade das pessoas, porque, na verdade, a gente tem a sensação de que os sistemas urbanos são projetados por alguém que vê a cidade lá do alto, mas que não consegue entender o que está acontecendo naqueles meandros, nas avenidas, nos terminais e pontos de ônibus...
Nós temos um programa, o QualiÔnibus, que hoje conta com 22 cidades do Brasil, que tem justamente como foco trazer essa percepção das pessoas para alimentar esse planejamento. A gente tem metodologias padronizadas para coletar informações e uma de nossas principais ferramentas é uma pesquisa de satisfação com as pessoas que utilizam o sistema de transporte. Mas, não apenas para saber se a pessoa está satisfeita ou não, mas para que consigamos entrar em mais detalhes e entender quais são os pontos que ela vê como positivos no sistema e explorar isso dentro do nosso planejamento, nas nossas comunicações com as pessoas. Muitas vezes a gente nota um estigma de que o transporte coletivo é ruim de maneira geral, mas quando começamos a entrar nos detalhes, notamos que há vários aspectos que são positivos, bem avaliados, e podem ser aperfeiçoados e levados para outras cidades. Além de pesquisa, que é quantitativa, de satisfação, nós também estimulamos as cidades a utilizarem outras ferramentas, como, por exemplo, os grupos de escuta ativa, que são uma ferramenta mais qualitativa, que permite identificar outras percepções e trabalhar tudo isso dentro do nosso planejamento de mobilidade.
O trabalho de vocês está voltado sobretudo para ônibus. E de forma geral, quando a gente vê as pesquisas, a gente nota que as pessoas querem mais sistemas sobre trilhos, pela pontualidade e até pela segurança que esses sistemas de transportes oferecem. Existem estudos do WRI também sobre possibilidades de expansão de trilhos nas cidades?
Quase 90% dos deslocamentos de transporte coletivo nas cidades brasileiras são feitos sobre pneus. Então, nós temos maior foco nisso, justamente para ajudar a qualificar esses noventa por cento. Mas, quando o transporte sobre trilhos é viável - porque ele exige um investimento inicial muito mais alto - nós atuamos para casar melhor esses dois serviços, porque os trens e metrôs não conseguem ter a mesma capilaridade do sistema sobre pneus. Então, nós trabalhamos para tirar o melhor proveito dessa rede multimodal integrada nas cidades, porque em muitos casos esses sistemas não se conectam de nenhuma maneira: um gestor cuida dos trilhos e outro cuida dos ônibus., sem que haja uma tarifa integrada, obrigando as pessoas a pagarem duas tarifas. Nós estimulamos a adoção de cartões que possibilitem essa integração, para que o usuário tenha descontos e possa usar os dois sistemas também com uma integração física.
A senhora falou dessa integração com outros modos, mas há uma concorrência mais recente, que é feita pelos transportes de aplicativos, carros, motos e agora também pelo transporte em ônibus sob demanda. Essa concorrência, segundo algumas visões, pode desorganizar o sistema de transporte existente e de alguma forma criar uma situação de vale tudo...
Quanto mais linhas de transporte coletivo a gente tirar das nossas cidades, maior o risco disso acontecer. Ainda não chegamos a esse ponto, mas é um alerta de atenção. Se continuarmos a retirar viagens e eliminar linhas para diminuir os custos e não aumentar tarifa, a prestação do serviço acaba piorando ainda mais sua qualidade. E daí, a gente começa a ter esse risco, cada vez maior, de que os outros modos, que trabalham sem nenhuma regulação, compitam com o transporte coletivo, que é regulamentado. Cabe ao poder público regular esses e outros serviços de maneira que eles sejam complementares, e não concorrentes, com a rede de transporte coletivo.
Mas como regular os aplicativos?
Há exemplos de cidades, principalmente em nível internacional, que já fazem uma regulamentação. Por exemplo, se você usa o carro de aplicativos em um eixo que conta com uma linha de metrô ou um corredor de ônibus, o valor pago por utilizar o app naquela área da cidade é mais alto. Agora, na periferia da cidade, onde não tem muita oferta de transporte coletivo, a pessoa não paga nenhuma taxa ao poder público. Então, isso ajuda a criar mecanismos para balancear um pouco essa competição e, de fato, ajudar a rede de transporte coletivo. Assim como o ônibus consegue ter maior capilaridade do que o trilho, há áreas da cidade, em que nem o ônibus consegue chegar. Então, nós podemos alimentar as pontas das nossas viagens com o transporte de aplicativos, com serviços de transporte coletivo que façam isso, em veículos menores.
E o papel da mobilidade ativa?
Temos alguns exemplos aqui no Brasil, dessa integração entre as bicicletas e o transporte público. É o caso de Fortaleza, que permite que as pessoas nos terminais das partes extremas da cidade, peguem uma bicicleta para ir até suas casas e permaneçam com ela até 14 horas, justamente para poder dormir com essa bicicleta em casa e no dia seguinte devolvê-la na estação e pegar de novo o ônibus para o seu trajeto no dia seguinte. Então, a gente tem aí alguns mecanismos para fomentar cada vez mais essa integração com os outros modos de transporte na ponta das viagens. Mas nos eixos estruturais da cidade, a gente precisa priorizar o transporte coletivo, seja ele sobre trilho ou sobre pneus, o que for mais aplicável a cada contexto, e com as regulamentações, fomentar essa integração e diminuir o risco de competição nesses eixos principais da cidade.
Então, voltamos ao assunto principal, que é como melhorar a eficiência na operação do transporte público...
Precisamos trabalhar nessa reestruturação dos nossos sistemas de transporte. E temos alguns exemplos mais recentes, aqui na América Latina, onde as novas licitações de concessões separam a posse do veículo e a operação do veículo. Então é possível cobrar maior qualidade desses operadores, porque eles não são os donos do veículo. Se o operador não atinge os indicadores mínimos de qualidade, pode-se mais facilmente trocar o operador. Ou ainda, outro exemplo, na cidade de São José dos Campos, que está fazendo a licitação com algumas linhas estruturais na cidade, mas também está prevendo serviços sob demanda em algumas áreas, para alimentar esses corredores estruturantes da cidade.
O valor da tarifa parece ser muito importante para recuperar os usuários e atrair novos passageiros. Como a senhora vê a perspectiva de tarifa zero nas grandes metrópoles?
Esse é um ponto importante, com certeza, mas nós ainda estamos um pouco longe dessa perspectiva, porque ainda não conseguimos nem pautar as questões de receitas extra tarifárias para a diminuição do valor da tarifa. Acho que sim, esse é um caminho a ser percorrido, mas antes disso, a gente precisa batalhar por tarifas acessíveis. Para isso, temos que buscar um sistema de qualidade que opere bem, que traga confiabilidade, e talvez nem todas as pessoas da cidade precisem ter tarifa zero. Vejo que essa decisão é uma questão bem mais local de cada cidade, mas para chegarmos a esse nível, precisamos começar a pôr em prática as políticas que permitam receitas extra tarifárias e a cobrança das externalidades geradas pelo transporte individual.
Existe alguma ação em curso para mexer nesses subsídios invisíveis dados ao uso do automóvel?
Temos participado de várias conversas com diferentes organizações na busca de um novo marco regulatório para o sistema de transporte coletivo, mas acho que essa pauta precisa ser mais discutida com a sociedade. De maneira geral, as pessoas ainda não têm o entendimento sobre a necessidade do transporte coletivo para a vida das cidades, assim como também não enxergam os subsídios implícitos que o automóvel recebe com os investimentos para a pavimentação de vias, construção de viadutos e tanta coisa mais, um investimento muito grande para beneficiar uma parcela menor da população, já que a maior parte dos deslocamentos nas cidades é feita por transporte coletivo. Então, precisamos trazer esses dados para as pessoas que vivem nas cidades brasileiras para trazer cada vez mais a opinião pública para a defesa do transporte público.
Não temos dados sobre o Brasil, mas uma pesquisa realizada no Canadá mostra que se uma pessoa decide fazer um trajeto a pé e para isso precisa investir um dólar, para a sociedade isso vai custar apenas um centavo de dólar. Por outro lado, se a pessoa decide investir um dólar para ir de carro, a sociedade paga 9 dólares e 20 centavos para prover a infraestrutura e tudo mais que é necessário para que o carro circule.
Para concluir, o transporte coletivo vai mesmo no sentido dos ônibus elétricos? Esse é um caminho sem volta, ou a gente vai ter um híbrido de elétricos, células de hidrogênio, etanol, biogás...Como é que a senhora vê esse futuro para os próximos vinte, trinta anos aqui no Brasil?
A gente vê que o futuro vai ser feito com frotas limpas. E hoje, a tecnologia pronta no mercado para atender a essa demanda de frotas limpas, é a tecnologia elétrica. Mas, com certeza, essas outras tecnologias, como a do hidrogênio, podem se mostrar viáveis para compor essas frotas limpas daqui a alguns anos, porque hoje ainda não há uma escala de frotas movidas a células de hidrogênio operando em nenhuma cidade do mundo. Mas, com certeza, a gente vê que os ônibus elétricos são uma realidade em diversos países, de forma também viável na realidade brasileira. O Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, tem cinquenta mil mortes por ano devidas a doenças respiratórias e cardiovasculares, que são muito relacionadas à queima de combustíveis de veículos individuais e de transporte coletivo. Então, a gente precisa começar a minimizar esses impactos e as frotas elétricas são um caminho viável. Nós estamos começando uma cooperação entre diversas organizações, incluindo parceiros do governo da Alemanha, para atuar em cinco cidades do Brasil, no sentido da transição para ônibus elétricos nessas cidades. São 20 cidades mundiais, cinco delas no Brasil: Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador, Campinas e São Paulo.
Para concluir, volto aos trilhos, ao bonde moderno, o VLT. Anos atrás, em um evento organizado pelo Mobilize, um professor USP defendeu fortemente a substituição dos ônibus por veículos sobre trilhos. Em sua visão, um VLT, traria mais segurança por ter uma trajetória muito mais previsível, que não escapa dos trilhos. Isso é discutido pelos profissionais que trabalham no planejamento do transporte público?
Eu posso dar uma resposta um pouco genérica, porque nós temos outros colegas que participam mais dessas discussões sobre segurança.Nós temos alguns estudos que mostram como a implementação de sistemas prioritários ajudam a diminuir os acidentes envolvendo os ônibus. Então, com as faixas exclusivas ou corredores é possível dar um maior grau de controle, além das tecnologias nesses veículos, que também ajudam. E tem também o ambiente viário, que é uma das nossas grandes áreas de atuação do: criar ambientes viários seguros, de forma que, caso aconteça, e se acontecer algum imprevisto na condução do veículo, esse ambiente proteja as pessoas vulneráveis na via. Então, o desenho de intersecções, que é onde acontece a maior parte dos problemas, pode diminuir muito os riscos. Além, é claro, da velocidade praticada nessas vias, que também é fundamental para diminuir a incidência desses acidentes.
Ouça a participação de Cristina Albuquerque no podcast Expresso #43
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