Em setembro, o Mobilize Brasil completa uma década de atividades. E para começar as comemorações, entrevistamos seu fundador e diretor, Luiz Henrique da Cruz Ribeiro, ou simplesmente Ricky Ribeiro. Imobilizado em razão de uma doença degenerativa, Ricky continua inquieto, projetando novos sonhos. E para esta entrevista, ele respondeu às questões pacientemente, digitando o texto com os olhos
O Mobilize está fazendo dez anos. Você diria que as cidades brasileiras melhoraram em mobilidade urbana aolongo desta década?
Algumas áreas da mobilidade urbana tiveram uma melhora significativa, outras não. No geral, as maiores mudanças em uma década ocorreram fora da esfera pública local, que é a principal responsável por gerir as formas de deslocamentos da população. Na minha opinião, as empresas foram as grandes responsáveis por alterações na circulação de pessoas e de mercadorias, para o bem e para o mal, nos últimos dez anos. Novas tecnologias e aplicativos ditaram tendências e mudaram comportamentos tanto no transporte individual, como no transporte coletivo e nos modos ativos.
Que exemplos você citaria de ações públicas que geraram efeitos positivos nas cidades?
Muitas prefeituras conseguiram aumentar significativamente a quilometragem de suas estruturas cicloviárias, o que, sem entrar no mérito da qualidade, é uma boa notícia. Além disso, houve importantes avanços, por exemplo, em relação à legislação federal voltada para o tema. Três bons exemplos são: a Lei 12.587/2012, que define a Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão, e o fato do transporte ser incluído como direito social na Constituição. Apesar do grande avanço legal, na prática pouco melhorou para os pedestres e usuários de transporte coletivo nas cidades do país. As calçadas seguem, via de regra, tendo péssima qualidade e sendo um obstáculo para a mobilidade a pé.
Resumindo, houve um avanço tímido, abaixo do desejado. Mas para concluir com uma mensagem positiva, eu tenho esperança que melhore bem mais nos próximos anos, já que na última década o movimento que luta por cidades mais humanas e sustentáveis se fortaleceu.
É visível que aumentou a conscientização das pessoas em relação ao tema, o espaço na mídia e o número de organizações que atuam com a causa, como o Mobilize.
Desde que você criou o Mobilize, o que mais o frustrou e o que mais o surpreendeu no desempenho do portal?
Eu gostaria de ter feito uma atividade mais “mão na massa”, atuando em intervenções urbanas com envolvimento da população. Nunca comentei sobre isso. Além da vocação do Mobilize de difusão de informação e conhecimento, elaboração de estudos e realização de campanhas, eu imaginava também alguma atuação em campo. Mas, meses depois do lançamento do portal a doença evoluiu a ponto de eu precisar fazer uma traqueostomia e parar de sair de casa durante cinco anos.
Positivamente, o que mais me surpreendeu foi perceber que nosso trabalho estava influenciando governos a implantarem políticas públicas de mobilidade urbana sustentável. Foi gratificante ver, por exemplo, prefeituras reformarem as calçadas avaliadas como ruins pelas duas campanhas Calçadas do Brasil, melhorando a acessibilidade e beneficiando diretamente os cidadãos. Outra grande alegria foi ver a avenida Paulista aberta à população, aos pedestres e bicicletas, e livre dos carros. Eu lembro que a primeira vez que conversamos sobre isso no Mobilize parecia um sonho muito distante, praticamente inatingível. Essa havia sido uma luta minha e do Mobilize, ao lado de tantas outras organizações, em prol da mobilidade urbana sustentável.
Naqueles dias iniciais, em que você imaginava o que poderia fazer para atuar socialmente, por que a opção pela mobilidade urbana sustentável? O que o inquietava?
Tenho outros temas de interesse, é verdade, e vinha atuando com projetos de educação, além de gostar bastante de ações de preservação ambiental. Mas, desde que morei em Barcelona, mobilidade urbana e urbanismo se tornaram uma grande paixão, e há uma explicação para isso. Minha vida mudou radicalmente para melhor na Europa, muito em razão da disposição urbana daquela cidade e da grande oferta de mobilidade.
No Brasil, eu residia afastado de São Paulo, mas fazia faculdade na região da Paulista. Eu acabava dirigindo, em média, 70 km por dia. Em Barcelona, eu também estudava em outra cidade, mas lá eu ia pedalando até a estação, colocava a bicicleta dentro do trem, e continuava pedalando numa região proibida para carros, com diversos pedestres e uma praça repleta de crianças correndo.
Para quem antes passava horas dirigindo, fiquei meses sem entrar em um carro nem uma única vez. E não sentia nenhuma falta. Ao contrário, estava mais saudável, com muita disposição e, principalmente, mais feliz. Queria que todos tivessem a oportunidade de vivenciar os mesmos benefícios e estilo de vida que eu tinha experimentado durante dois anos e meio. Por isso, quando voltei de Barcelona, sempre que andava pelas ruas do Brasil, fosse em São Paulo, Recife, Rio, ou em outra cidade, de bicicleta, ônibus ou a pé, ia projetando mentalmente ciclovias, estruturas para o transporte coletivo e, é claro, elas, as calçadas. Então, ao escolher um tema para me dedicar quando me vi mais perto da morte, não tive dúvidas de que seria mobilidade urbana sustentável. Além disso, mobilidade urbana é um tema transversal, que envolve inúmeros outros fatores ambientais, sociais e econômicos.
Ricky Ribeiro em um tranvía (VLT) de Barcelona, na Espanha Foto: Arquivo pessoal
Em meio à pandemia, qual a importância de haver alternativas de mobilidade ao transporte público lotado?
Quanto mais opções de mobilidade sustentável disponíveis, maior o leque de formas de transporte ao alcance das pessoas. Isso vale em tempos normais e ganha ainda mais importância em momentos de pandemia. Então, sim, eu acho importante as cidades disporem de extensas ciclovias, calçadas acessíveis, diversos sistemas de compartilhamento, e serviços de mobilidade por aplicativo. Mas veja: o transporte coletivo é imprescindível. Não temos como pensar as cidades, especialmente as médias e grandes, que ocupam grandes áreas territoriais, sem suas linhas de ônibus, redes metroviárias e outras opções de transporte de massa.
E o home-office, seria parte da solução para este e outros momentos?
A pandemia da covid-19 mostrou que muitos deslocamentos podem ser evitados com trabalho remoto e reuniões online, mas isso atinge principalmente um grupo privilegiado, enquanto boa parte da população tem empregos onde o deslocamento é necessário. Como é impossível abrir mão dos sistemas de transporte coletivo, precisamos discutir meios para resolver a crise do transporte e encontrar soluções e formas de financiamento que permitam termos um serviço de qualidade que possibilite um mínimo de distanciamento social.
Ricky Ribeiro com sua bicicleta, também em Barcelona Foto: Arquivo pessoal
E quais são os planos do Mobilize para este ano e para o futuro?
Neste ano, com apoio de nossos patrocinadores e leitores, pretendemos atualizar o Estudo Mobilize 2011, que foi o primeiro estudo comparativo sobre mobilidade urbana sustentável em nove capitais brasileiras. Agora, queremos mostrar a situação nas 27 capitais e, com base nesse levantamento, relançar a seção Acompanhe a Mobilidade, que trará informações sobre planos, projetos e obras. Também vamos realizar uma segunda edição do Concurso Mobilize de Ilustrações e, se possível, o festival Minuto Mobilidade, um concurso de filmes rápidos sobre temas da mobilidade urbana. E por fim, depois de dez anos sentimos que a plataforma do site está envelhecida e precisa de mudanças para ajustá-la às novas tecnologias, além de uma atualização no design. O primeiro passo está sendo dado hoje (5), com a nova versão de nossa logomarca, graças à dedicação da arquiteta Marília Hildebrand que fez o redesenho.
Tem mais: vamos continuar produzindo o podcast Expresso Mobilize, que está cada dia melhor. Para dar continuidade a todos esses projetos vamos realizar uma campanha financeira por meio de nossa parceira, a plataforma Abrace uma Causa. A campanha já está no ar e eu conto com o apoio de todos os amigos leitores.
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