Como atravessar? Por que atravessar? Quando atravessar?
Talvez essas perguntas não surjam conscientemente na nossa cabeça quanto temos que cruzar de uma calçada a outra, mas certamente fazemos inúmeros cálculos sem perceber quando atravessamos. Temos que observar o fluxo, a velocidade dos automóveis, o tempo aproximado que levaremos, considerar se os motoristas nos veem, e tantas outras coisas mais.
Nesse cenário, muitas vezes agitado, em que o pedestre é colocado todo dia e a toda hora, sentimos que a cidade - pelo menos esta cidade que temos hoje - não foi feita para andar a pé. Então, quando caminhamos temos que estar atentos e conscientes de uma série de riscos...Estranho, não? É um mundo invertido.
Duas palavras: travessia e encruzilhada. Uma travessia pode significar objetiva ou simbolicamente a transição de um estado a outro, um espaço de passagem, de ligação. Encruzilhada, literalmente, é uma intersecção entre duas linhas, físicas ou imaginárias, um cruzamento onde duas coisas se encontram e se atravessam. Numa visão metafórica ou mesmo mística as duas palavras representam uma mudança ou encontro entre forças ou energias. A cruz e o caminho, na psique humana, têm significado de algo a mais, de escolhas, passagens, de algo que nos leva além.
Cruzamento no Jaçanã, em São Paulo: 7 ruas e 10 direções de trânsito. Há só um semáforo com botão para pedestres, o que força a travessia nos intervalos entre as paradas dos carros Foto: José Osvaldo Martins
As duas palavras apresentam ideias ou conceitos mais positivos do que negativos, embora encruzilhada também traga a carga da decisão, o ir ou não ir. Usamos a palavra encruzilhada para dizer que se está numa posição difícil, como a humanidade, que hoje encara uma dura encruzilhada ambiental e sanitária. E quando falamos de caminhar e atravessar uma avenida movimentada, pode-se dizer que realmente estamos numa verdadeira encruzilhada, no pior sentido.
As pessoas em meio ao metal cruzado
Falando em mobilidade a pé, os semáforos da cidade de São Paulo são uma coisa de louco: muito tempo para os carros e uns segundinhos para os pedestres. Um especialista me explicou que essas temporizações são baseadas em normas internacionais, dados científicos etc.
Mas, para a elaboração deste artigo, observei alguns desses “faróis” - que é como os chamamos aqui. Para a travessia de pessoas, o sinal luminoso fica 7 segundos verde e depois passa a piscar vermelho por 10 segundos, dando o total de 17 segundos. Parece muito, não é?
Mas, considere que temos que descontar alguns quesitos, como o tempo de reação das pessoas, se elas estão levando algo pesado, como uma sacola, ou empurrando um carrinho, se são idosas, ou alguém com mobilidade reduzida etc. E considere também que quando a luz fica verde ainda há veículos passando. Então, estes 17 segundos não são lá muita coisa. Desta forma, muitas vezes ainda estamos atravessando, e o sinal já ficou verde para os carros!
Terror psicológico
Há um detalhe crucial, aqui em Sampa, que é esse padrão de ficar verde e logo passar para o vermelho piscante: até uma criança sabe que o vermelho significa "Atenção, Cuidado!". A mensagem é clara: corra! passa logo que vai abrir! você está atrapalhando! Na cidade que não para, se você parar, nós passamos por cima! É um tipo de terror psicológico.
Um triste exemplo dessa cultura do terror é a "normalização" do desrespeito ao sinal vermelho por uma parcela dos motoristas e, principalmente, pelos motoboys. Esses trabalhadores da motocicleta arriscam-se em manobras perigosas e colocam também em risco a vida das pessoas que caminham quando aproveitam o ciclo verde dos pedestres para atravessar os cruzamentos. Infelizmente essa lógica de "não perder tempo" segue impune, porque ninguém multa e poucos reclamam.
O Brasil tem um padrão nacional de sinalização definido pelo Contran, mas essas normas são interpretadas localmente pelas prefeituras. Em algumas, o semáforo mantém o a luz verde até acabar o tempo, e em outras há uma contagem numérica que ajuda a pessoa a saber quando tempo lhe resta para atravessar. Se não é a pior, São Paulo deve estar entre as piores cidades do país.
Os semáforos paulistanos que observo só oferecem um tempo maior para os pedestres em determinadas situações, quando o ciclo verde coincide com o fluxo de carros que também estão cruzando a via. Nestes casos, o verde se mantém por 40 segundos, um minuto, e às vezes até por confortáveis 90 segundos. Mas a prioridade continua a ser o fluxo de veículos.
Falta de visão ou de vontade?
Semáforos sonoros - aqueles que auxiliam deficientes visuais em travessias - são quase uma lenda urbana. Para atender a 340 mil deficientes visuais (IBGE 2010), São Paulo contava até 2015 com apenas 14 semáforos sonoros, dos quais apenas oito estavam em bom funcionamento.
Placa adverte motoristas sobre a proximidade de semáforo para deficientes visuais
Em 2016, a prefeitura da cidade aunciou a instalação de mais 125 equipamentos desse tipo, mas o número ainda é muito baixo se comparado aos mais de 3.500 semáforos de pedestres existentes na cidade. Assim, a pessoa cega ou de baixa visão quase sempre depende de alguém para cruzar uma rua. Isto numa cidade alfa em influência mundial, com uma economia e receita de impostos colossal. O que falta? Dinheiro ou visão?
Faixas de pedestre diagonais
Pedestres, por razões óbvias, sempre procuram o caminho mais curto. Nas esquinas não é diferente: a maioria prefere atravessar os cruzamentos pelo menor trajeto, da forma mais rápida possível. Então a travessia diagonal entre um ponto e outro deveria ser algo comum, certo? Mas, como aconteceu desde a invenção do automóvel, o desenvolvimento das cidades deixou isso de lado e aprendemos que temos que dar uma volta enorme em "L" para chegar à esquina que queremos.
Apesar de haver pesquisas que registram as primeiras travessias diagonais nas cidades de Kansas e Vancouver lá pelos anos 1940, a ideia só veio mesmo a ficar popular pela coragem de um engenheiro de tráfego americano chamado Henry Barnes. Ele mesmo afirmou não ter inventado o conceito, mas ficou conhecido pela sua defesa e implantação em locais de grande trânsito.
Vídeo mostra a travessia de pedestres em uma famosa faixa em X na cidade de Tóquio
Registro aqui uma das frases atribuídas a Barnes sobre as travessias: “Do jeito que as coisas estavam, uma pessoa que vá fazer compras no centro da cidade precisava de um trevo de quatro folhas, um amuleto vodu e uma medalha de São Cristóvão para chegar inteiro ao outro lado da rua.” Esses cruzamentos em X ficaram mais conhecidos em imagens do Japão, país com alta densidade populacional, mais precisamente em Tóquio. A ideia é simples, o semáforo fecha para todos os veículos e as pessoas podem atravessar em diagonal ou em linha reta, como preferirem.
Aqui em São Paulo e em outras cidades do Brasil, as prefeitura começaram a implementar essa ideia na última década em vias de alta circulação, geralmente nas áreas mais centrais. A Companhia de Engenharia de Trânsito (CET) de São Paulo fez alguns estudos no ano de 2016 para avaliar a viabilidade deste tipo de faixa de pedestres e os resultados podem ser consultados no link www.cetsp.com.br.
Faixa em X no centro de São Paulo, num local com fluxo intenso de pessoas a pé: cor foi alterada para verde, conforme normas do Contran Foto: César Ogata/Secom
Eu particularmente gosto da ideia, que não me parece algo tão genial. É apenas lógico. Não é isso que todos procuram quando se deslocam, eficiência? Acredito que as pessoas em sua maioria gostariam de ver mais faixas assim. No entanto, a solução foi implantada de forma muito tímida e não evoluiu para um programa mais amplo. A hesitação sugere que os prefeitos e seus secretários parecem ter medo de mudanças que mexam com o espaço dos motoristas.
Mas há de se pensar também no outro lado, que é vital, a segurança. É preciso investir primeiro em educação da população para que todos possam entender o conceito de travessia cruzada, como diz o engenheiro Paulo Guimarães em artigo (leia o texto) publicado no site do Observatório Nacional de Segurança Viária.
Travessia de retorno
A cada dia, caminhar se torna mais perigoso e incerto. As ruas estão a cada dia mais tomada pelos carros e o fluxo cada vez mais intenso. As pessoas, que são o elo mais fraco, correm em meio aos intervalos do metal em movimento para chegar vivas do outro lado. Embora a sociedade seja feita primordialmente por gente, as máquinas dominam nossos espaços e ficamos a margem. Essa mudança, ou retorno ao original, deveria orientar os planos e projetos urbanos, para inverter a lógica do progresso acima de tudo, afinal o progresso deve estar a serviço da vida.
Para andar nessas cidades é preciso fé cega e um pé atrás. Atravesse, cruze, siga além e fique atento. Continue caminhando.
*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.
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