A meta de 236 km de rede ciclística estabelecida pelo Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI) de Fortaleza para 2020 foi ultrapassada, segundo a Prefeitura. E a administração promete dobrar esse número: até 2030, a ordem é chegar à marca de, no mínimo, 524 km de malha cicloviária disponível.
Um avanço significativo, avalia André Soares, doutor em Engenharia de Transportes e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza (Unifor), tendo-se em conta os 68,2 km de rede cicloviária registrados em 2012. Mas, na sua opinião, uma marca ainda incipiente, longe do ideal, quando comparada ao que grandes metrópoles brasileiras e estrangeiras vêm experimentando há tempos.
“Fiz mestrado e doutorado fora do país, morei na Holanda e no Japão, e lá usava bicicleta para tudo. É uma prática historicamente incorporada à cultura urbana, fazendo parte inclusive de todo um sistema multimodal de transporte complementar entre si. Quando retornei a Fortaleza, quis incorporar esse bom hábito à minha nova realidade e realmente passei a usar a bicicleta como meio de deslocamento principal: ia e voltava da Unifor, pedalava até a academia, o supermercado etc.”, conta Soares.
Manter o hábito de pedalar mostrou suas limitações ao jovem professor: “A infraestrutura de apoio ao longo de cada trajeto não evoluiu e ainda é muito limitada. Não há amenidades associadas, como espaços para estacionar de maneira segura ou mesmo fazer uma pausa para descanso à sombra, artifícios presentes em uma rede conectada completa, onde se vê, por exemplo, bicicletas disponíveis em cada estação de metrô ou ônibus”.
Ao mesmo tempo, ele destaca ser inconteste os benefícios e vantagens de pedalar, e cita: além de diminuir a emissão de CO2 no ar, o uso da bicicleta como principal meio de transporte também representa economia, já que os custos com deslocamento diminuem a olhos vistos. Além disso, aquela atividade física tantas vezes adiada se incorpora naturalmente à rotina, beneficiando a saúde. A depender da distância percorrida, pedalar também pode ser garantia de maior agilidade frente ao ônibus ou carros presos em engarrafamentos, diz.
André Soares, professor da Unifor, aderiu ao ciclismo quando morava no exterior. Foto: Acervo pessoal
“Eu, que vinha do Cocó, chegava à Unifor pedalando em poucos minutos e contava com o estímulo extra de trabalhar em um local com infraestrutura ideal para quem pedala, já que, antes de entrar em sala de aula, podia acessar um bom vestiário para tomar banho e me recompor. Infelizmente, não é toda empresa que proporciona ao funcionário esse mínimo para que ele pense em aderir a outra forma de deslocamento que não seja o convencional e o mais poluente”, ressalta o professor.
Para ele, uma cidade plana como Fortaleza tem desenho original e potencial para pedalar mais e melhor, apesar do desconforto térmico frequentemente associado a não disseminação da prática. “Fortaleza é uma das cidades menos arborizadas do país, chegando a ser hostil com o meio ambiente. Aqui, há uma sanha por derrubar árvores e construir toldos quando se deveria incorporar elementos naturais ao desenho urbano para criar um clima mais ameno e convidativo às pedaladas e caminhadas. Não há sombra ou paradas de apoio estruturadas que amenizem os efeitos de um sol escaldante ao longo dos trajetos”, desabafa Soares.
A malha cicloviária de Fortaleza concentra-se ainda apenas em parte de seu território urbano: “A cidade nunca foi pensada para o transporte não-motorizado. Ao contrário, é projetada até hoje para máquinas e, mesmo quando há investimento em ciclofaixas ou ciclovias, ou em iniciativas de compartilhamento de bicicletas, como o ‘Bicicletar’, o impacto se dá, sobretudo, em áreas nobres”, diz ele, que é pesquisador em mobilidade ativa.
Por conta do isolamento social imposto pela pandemia da covid-19, o professor suspendeu temporariamente as próprias pedaladas, admite sentir falta do trajeto que fazia entre o Cocó e a Unifor. Mas pela falta de infraestrutura adequada já não se encoraja a estender a prática até o Centro da cidade, endereço de seu mais novo trabalho.
Pedalar para não estressar
O ônibus sempre lotado e as horas de espera sob sol até que finalmente se avistasse o “busão” na avenida Washington Soares fizeram a estudante de Educação Física e atleta da seleção de basquete da Unifor, Thaís Santana do Nascimento, sonhar com a primeira bicicleta. Ao chegar de Barbalha, sua cidade-natal, para estudar e treinar em Fortaleza, em 2018, ela conta que ficou impactada com a quantidade de carros e os enormes congestionamentos da capital, que só atrapalhavam a rotina.
“Então, quando fui alojada em um apartamento próximo à Câmara dos Vereadores com mais cinco colegas bolsistas, todas atletas como eu, não demoramos a entender que ir a pé para a Unifor seria mais prático e rápido até do que recorrer ao transporte público”, relembra a estudante. Isso, pela economia que passou a fazer, e apesar do sol causticante de Fortaleza.
Thaís pensou em usar o programa Bicicletar, mas como não tinha cartão de crédito, deixou a opção de lado, raspou suas economias e decidiu comprar sua bike. “Foi a melhor compra de toda uma vida, porque, principalmente depois da pandemia, a bicicleta não só me serve para qualquer tipo de deslocamento, livre de aglomerações em ônibus, como se tornou uma forma de espairecer em um momento de lockdown, em que até os treinos foram suspensos. Pedalar pela cidade tem me curado o estresse, além de também ser uma forma de condicionamento físico para que eu não fique totalmente parada”, destaca a atleta.
"O ideal para nós ciclistas seria ter mais ciclovias do que ciclofaixas, porque estaríamos separados em um espaço próprio, e não rente ao tráfego. Adotei uma estratégia de acordar mais cedo para não ter que enfrentar horários de pico e, na volta, esperar o rush passar para pedalar de volta. É mais seguro”, conta Thaís, lembrando que assim também não abre mão do prazer de pedalar.
Thiago Ruy, que sente falta de pedalar com os amigos à beira-mar. Foto: Acervo pessoal
Outro estudante da Unifor, Thiago Ruy, do curso de Publicidade e Propaganda, acha que a presença cada vez maior dos ciclistas nas ruas da cidade, dividindo espaço com automóveis, já deveria ser um capítulo à parte nas autoescolas. “Os motoristas ainda não enxergam os ciclistas como prioridade. Me intriga como Fortaleza já ganhou prêmio internacional de mobilidade urbana sem nunca ter investido em uma ampla campanha publicitária que informasse e educasse a população em geral para esse uso compartilhado das vias urbanas. Não é só pintar o asfalto e demarcar espaço em grandes avenidas, mas pensar que ruas secundárias podem ser mais seguras para aqueles que pedalam”, sugere.
Thiago se diz saudoso dos já tradicionais passeios com o grupo de amigos do ensino médio: “Desde o agravamento da pandemia, não tenho mais pedalado como antes, quando saía do Bairro de Fátima e ia até a Praia de Iracema para encontrar a turma do colégio, todos de bicicleta. Era a minha maior diversão e ainda quero voltar a pedalar com eles à beira mar. De qualquer forma, venho pedalando sozinho mesmo e essa tem sido a forma mais prazerosa que encontrei neste período de isolamento social para me conectar com o mundo”, diz.
“Quando pedalo me sinto mais livre, é como se pudesse ver tudo com outros olhos e saber que há vida pulsando para além das telas do computador, que é onde a gente agora passa a maior parte do nosso tempo. A bicicleta é meu antidepressivo e meu detox corporal também. Então, quando tudo melhorar, essa relação com o pedal tende a se intensificar”, finaliza o estudante.
Bike é tendência
De bicicleta, o trajeto do útil ao agradável ficou ainda mais curto para o analista de mídias sociais da Diretoria de Comunicação e Marketing da Unifor, M. Cipriano, mais conhecido pelo apelido “Muskito”. É que, no arrastar da pandemia da covid-19, ele viu a tensão aumentar quando precisava acessar o transporte público para se deslocar até o trabalho.
“Subia no ônibus apavorado, segurando só com uma mão nas alças de teto e, ao saltar, precisava me higienizar por completo antes de iniciar o expediente. Foi quando cogitei aderir ao programa Bicicletar, e isso só me trouxe benefícios”, ele explica.
“De cara, perdi metade do peso que havia ganho na pandemia, e agora meu condicionamento físico é outro. Pedalo entre 30 e 40 minutos do Meireles, onde moro, até a Unifor. Ao chegar, tenho todo um suporte de apoio, como vestuário para banho e até atendimento interno de primeiros socorros, caso precise. A bike pra mim é um caminho sem volta, e torço para que a malha cicloviária se expanda por outros tantos bairros, como já vem acontecendo, já que hoje vejo estações até na Vila Peri, onde minha mãe mora”, pontua Muskito.
Sobre a segurança do ciclista, Cipriano enfatiza: “É preciso preparar e educar a cidade para que haja de fato respeito e cuidado com essa parcela da população que só gera benefícios à vida urbana, já que descongestiona o trânsito e ajuda a emitir menos gases poluentes no ar. A maioria motorizada não pode continuar vendo o ciclista como obstáculo, mas um aliado, sobretudo em uma época onde os deliverys também se tornaram um serviço imprescindível e o isolamento social exige a adesão a formas de deslocamento sem aglomeração”.
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