"O futuro não virá da eletrificação. Acredito mais na mobilidade ativa"

O pesquisador e ativista Lincoln Paiva fala sobre os avanços e recuos na mobilidade urbana entre 2011 e 2021. A entrevista integra a série "Dez Anos do Mobilize Brasil"

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Regina Rocha/ Mobilize  |  Postado em: 29 de março de 2021

Lincoln Paiva: cidades para caminhar e pedalar

Lincoln Paiva: cidades para caminhar e pedalar

créditos: Arquivo pessoal


Lincoln Paiva é especialista em Planejamento de Cidades pela Poli/USP, mestre e dourando em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/Mackenzie, onde também é pesquisador no Laboratório de Políticas Públicas. Caminhante e ciclista por opção, Lincoln acompanha o Mobilize desde o nascedouro, dez anos atrás. Nesta entrevista, ele faz um breve balanço desse período, discute as oportunidades perdidas com a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 e desabafa seu inconformismo com a incapacidade dos governantes em lidar com o transporte público durante a crise da Covid 19

 

Quando você começou a atuar com meio ambiente e mobilidade urbana?
No ano 2000, abandonei o carro e passei a utilizar a bicicleta. Aliás, isso não era novo para mim, pois desde que me formei na faculdade em 1992 usava a bike para ir trabalhar. Nessa época, bem antes da criação da Green Mobility, já atuava com mobilidade urbana. Até 2008 a Green Mobility era uma consultoria e em 2011 eu criei o Instituto para atuar mais em "advocacy". Na verdade, eu era especialista em relatórios ambientais e depois de 2007 passei a fazer medições de carbono (para a WRI/FGV). Preparava relatórios ambientais sobre emissões veiculares para diversas empresas, no âmbito do plano municipal e estadual de mudanças climáticas.

Segui nessa linha: fui conselheiro municipal de políticas urbanas, membro da comissão de paisagem urbana e conselheiro do Cades-Pinheiros. Depois migrei para o urbanismo, fiz especialização em planejamento urbano pela Poli/USP, mestrado e doutorado em urbanismo pela FAU/Mackenzie, onde hoje faço parte do laboratório de políticas públicas da instituição.


Como você vê o futuro da mobilidade urbana no Brasil? Carros elétricos serão "a bola da vez", ou teremos mais bicicletas e transporte público?
Não, eu não acho que o futuro virá da eletrificação. Quando a tecnologia de baterias estiver barata e acessível, será mais um produto, e mais um problema para o trânsito. Acredito na mobilidade ativa, no andar a pé, de bicicleta. Claro que para isso acontecer haverá uma profunda mudança na forma como nos deslocamos para o trabalho, lazer, saúde, educação. Nas grandes cidades onde predomina o setor de serviços, onde muita gente consegue fazer seus trabalhos em home-office, o carro será desnecessário. Grandes deslocamentos serão desnecessários, e mesmo agora a Covid-19 vem mostrando que isso é possível: muitas empresas desmobilizaram um enorme capital, escritórios foram postos todos em locação, e as empresas conseguiram reduzir custos com tudo isso.

Estamos passando por um momento de adaptação, mas aquela vida de antes, acredito, não teremos mais. O que existe pela frente é um enorme campo para repensarmos o dia a dia. E, lógico, aparecerão novos negócios, o comércio será mais em modo delivery, com mais entregas a domicílio. 

 

Dê alguns exemplos do que melhorou em São Paulo para o pedestre, o ciclista e os passageiros do transporte público.
Em São Paulo, a instalação de ciclovias mudou tudo. A ciclovia não é apenas uma infraestrutura para ciclistas, ela é uma infraestrutura para a cidade - a cidade ficou mais calma, nas vias com ciclovia reduziu-se a velocidade, as crianças puderam caminhar mais pelos bairros.
Enfim, as ciclovias deram mais segurança, ajudaram a reduzir poluição e barulho. Todos ganharam, mesmo aqueles que acham que ciclovias foram colocadas sem planejamento. Outro exemplo: as faixas exclusivas de ônibus, que deram mais agilidade ao transporte coletivo.
Com essas faixas, a prefeitura conseguiu racionalizar melhor a passagem dos ônibus, e os meios de transportes estão mais integrados do que antes. Mas é preciso dizer: ainda falta muito, falta inteligência nos processos, falta desenho urbano na cidade, falta planejamento, falta coesão das políticas públicas entre as várias pastas na prefeitura.


Como vê a situação atual de pandemia e de confinamento social? Acredita que a pandemia mudará as formas como usamos os espaços públicos?
Sim, já mudou. Mas quero falar de uma intervenção em especial: aquela obra faraônica que o [prefeito de São Paulo] Bruno Covas fez no Vale do Anhangabaú. Resultou num enorme parque de concreto que precisa ser alagado para utilizar as luzes coloridas, tudo de muito mau gosto, sem arborização. E sem nenhuma prioridade. Muitos ativistas não se colocaram contra o projeto, mas é evidente a não necessidade de se fazer aquela reforma ali naquele momento. Depois veio a Covid-19 e as aglomerações foram proibidas, os parques fechados, as praças ficaram vazias... Ao mesmo tempo, as pessoas começaram a morrer na periferia por falta de saneamento básico, sem água nem torneira nas áreas mais vulneráveis. Faltam hospitais, leitos de UTI e, enquanto isso, o prefeito sai gastando rios de dinheiro para entregar o espaço, um "elefante branco", para uma parceria público-privada. Pergunto: isso é razoável?! E é só um exemplo, mas há vários...


O transporte público se tornou uma espécie de "patinho feio", pelas aglomerações geradas durante a pandemia. O que seria preciso para voltar a atrair esses usuários que fugiram para os carros de aplicativos e particulares?
Você quer dizer "tornaram o serviço um patinho feio", porque a administração dos transportes coletivos no país acha que a pandemia é uma brincadeira... E trata o povo que sai para trabalhar e trabalhadores dos serviços essenciais com desdém, como cidadão de quinta categoria. A primeira coisa que fizeram foi racionar ainda mais a frota, em vez de colocar todo o efetivo a serviço da população. A solução está lá, mas esses gestores querem apenas explorar o cidadão, querem espoliar ao máximo a dignidade das pessoas com serviços ruins. Veja que foram donos de garagens de ônibus em Minas Gerais que compraram vacinas contra o coronavírus, à revelia do governo, para que amigos e parentes desses empresários tomassem a primeira dose. É como se dissessem: "dane-se quem não pode", "dane-se quem trabalha nos serviços essenciais"... Esse infelizmente é o pensamento de um Brasil que precisa urgentemente de uma reforma ética e moral.


O Mobilize Brasil está completando dez anos. Na sua opinião, quais foram os principais avanços e retrocessos na mobilidade do país nesse período?
Eu conheci o Ricky [Ricky Ribeiro, fundador e diretor do Mobilize] se não me engano em 2010 durante uma palestra sobre mobilidade urbana no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Naquela ocasião, ele me mostrou um calhamaço de papel e falou do sonho que tinha de montar uma plataforma sobre mobilidade urbana. Perguntou o que eu achava, e disse que achava ótimo, ainda mais realizada por um jovem brilhante como ele. Partia de uma escolha difícil, porque era um tema tão envolvente mas pouco discutido e entendido então pela população.


Dez anos atrás não tínhamos nenhuma perspectiva para o país, era tudo muito difícil. Tudo era visto com muita desconfiança e o transporte estava relegado a velhos "transporteiros" da engenharia de trânsito que acreditavam que a resposta para tantos carros viria de mais vias expressas, mais velocidade, mais estacionamentos, entroncamentos, pontes, sinalização... A resposta vinha sempre da construção civil. Com o anúncio em 2007 de que a Copa do Mundo seria no Brasil algo mudou, o tema passou a fazer parte do cotidiano das pessoas que passaram a aguardar por mais obras de infraestrutura urbana, saneamento, hospitais, transportes etc. Os governos Lula/Dilma acenaram com recursos, com obras do PAC etc. Mas, de fato, quase nada disso aconteceu. No final, o que se fez foram somente os enormes estádios. Mas a discussão e a espera por uma nova mobilidade urbana, essas permaneceram. 

 

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