Idosos não devem pagar a conta da crise no transporte

Rafael Calabria, representante do Idec, critica o fim do transporte gratuito para pessoas entre 60 a 65 anos em SP

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil  |  Postado em: 09 de março de 2021

Idosos ônibus gratuidade

Gratuidade é necessária para o ir e vir de idosos

créditos: Agência Brasil


Coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Calabria tem buscado o diálogo com prefeitos e governadores de cidades brasileiras para discutir formas de financiamento do transporte público para além da tarifa paga pelos usuários. Nesta entrevista, ele critica o corte da gratuidade aos idosos adotado pelo prefeito Bruno Covas e pelo governador João Doria em São Paulo. A medida é inócua, mas prejudica muito essa faixa etária, diz ele.  Em sua visão, a receita para a crise no setor estaria na revisão das formas de gestão e na busca de outras fontes de recursos para aumentar os subsídios, melhorar a qualidade e assim atrair mais usuários aos ônibus e trens em todo o Brasil. Leia a entrevista...



Como o Idec recebeu a decisão do governo estadual de São Paulo de rever a gratuidade para idosos entre 60 e 65 anos no transporte público? O governo argumenta a necessidade de mudar as políticas para essa faixa etária, que supostamente está mais "jovem"...Mas essa restrição não cria uma barreira econômica para a circulação dos idosos, especialmente os que têm aposentadorias mais baixas?
O corte de gratuidade aos idosos foi muito equivocado e muito prejudicial. A decisão cria uma barreira e impede o acesso de milhares de pessoas ao sistema de transporte, pessoas que o usam para ir a consultas médicas, realizar exames em hospitais e mesmo para trabalhar, o que é muito comum entre aposentados. O corte também dificulta as visitas aos familiares, porque se trata de uma população vulnerável, que precisa desse contato com seus familiares. É um aumento muito grande - de zero para R$ 4,40, de uma só vez - e isso vai ter um impacto grande na vida dessas pessoas, no orçamento familiar. Inevitavelmente, elas vão deixar de fazer algumas viagens, e só farão as mais essenciais, o que vai limitar o direito de acesso à cidade dessas pessoas. E o ganho esperado pela Prefeitura e Governo do Estado não será tão grande, porque se trata de uma parcela pequena de usuários, que simplesmente deixarão de usar o transporte. Desta forma, o aumento de arrecadação esperado não irá ocorrer. Foi uma decisão desproporcional e injusta para tentar resolver um problema estrutural que é o desafio de como financiar o transporte público no Brasil.

 

 
Rafael Calábria, representante do Idec Foto: Idec



Mas, qual é o peso dos idosos nos custos de operação dos transportes públicos e como evitar  que as gratuidades onerem esses sistemas?
O custo da empresa é o custo do veículos, dos combustíveis, da manutenção e dos funcionários. As pessoas lá dentro do ônibus pagam uma tarifa e proporcionam a arrecadação que mantem o sistema funcionando. Mas, uma pessoa que goza da gratuidade, ela não gera um custo adicional, ela "não pesa mais" para o ônibus, correto? O problema é que como a maior parte das prefeituras pagam aos operadores por passageiro transportado, essa política induz à lotação máxima dos ônibus, porque para o empresário vale a pena ter mais pessoas transportadas com menos veículos. Essa forma de gestão também induz a atrasos e descumprimentos de partidas. E leva a que o passageiro gratuito seja tratado como um custo. Se tivéssemos um sistema mais adequado, que fosse baseado nos custos de operação e não no número de passageiros transportados, não importaria para o sistema nem para a prefeitura saber quantas pessoas não-pagantes estão no veículo. Se for uma, três ou dez o custo é o mesmo. O sistema de ônibus de São Paulo já começou a corrigir essa deformação com um novo contrato assinado em 2019, e essa forma de remuneração dos serviços já está em vigor em 32 áreas da cidade. Ainda não foi implantado em toda a cidade porque faltam algumas ferramentas previstas no contrato. Então, a Prefeitura de São Paulo, já poderia ter corrigido esse problema, o que tornaria esse corte de gratuidades ainda mais inócuo.


Sabemos - por pesquisas - que o transporte público no Brasil recebe baixos subsídios, muito menos do que em países da Europa e América do Norte. Qual seria - em sua visão - a mecânica mais adequada para equilibrar os custos de operação com a renda dos brasileiros que usam o transporte coletivo?
Temos que falar sobre subsídios, mas o debate sobre esse assunto é muito mal feito aqui no Brasil. O subsídio é um dos caminhos para corrigir os problemas do sistema de transportes. Afinal, o transporte público é um direito social previsto na constituição e tem que atender a todos na cidade, independente da renda das pessoas. Tem que atender as pessoas com deficiência, idosos, estudantes, tem que atender a todos. E sabemos que nas regiões menos densas, mais distantes, as linhas de ônibus nunca vão ser rentáveis. Aliás, mesmo nas regiões mais densas, com mais movimentação, os sistemas de transportes coletivos não são rentáveis, em nenhum lugar do mundo. Com uma tarifa mais alta alguns sistemas se pagam, mas eles não são nem universais, nem de boa qualidade, e não atendem ao direito social.
Então, para ter um sistema adequado, que respeite o usuário, com boa frequência, com ônibus literalmente disponíveis para os usuários a qualquer hora que ele precisar, e também para atrair mais usuários, nós precisamos organizar um sistema acessível e absolutamente barato para o usuário porque o Brasil é um país muito desigual, com uma população de baixa renda muito grande. A tarifa cobrada do usuário não pode ser alta, mas a qualidade do serviço tem que ser muito boa. O debate que tem que ser colocado é como subsidiar o transporte. Podemos pensar em tributar o carro particular, tributar os combustíveis, ou usar impostos que já existem, como o IPVA, ou em ações de marketing e propaganda nos veículos e nos terminais. Podemos também levar um debate no Congresso para mudar a forma como os recursos do vale transporte são aplicados. Por exemplo, em vez de pagar o vale apenas para o empregado, pagar uma parte para um fundo de financiamento do transporte. Esse é o debate essencial.


Apontar um déficit em uma prefeitura e por isso cortar as gratuidades é um remendo que não resolve o problema estrutural da falta de financiamento.


Não vai ser o corte da gratuidade para idosos que irá cobrir os três bilhões de reais que a Prefeitura de São Paulo investe a cada ano para subsidiar o transporte municipal. E há, também, o debate sobre a forma de gestão do transporte público. O Brasil não conta com uma regulamentação federal dos transportes que seja robusta e consiga orientar as políticas públicas em cada cidade. Falta uma regra, uma diretriz e até talvez ferramentas e órgãos federais para buscar esse financiamento, e buscar formas mais eficientes de gestão. 

 

De forma geral, os metrôs, trens e ônibus continuam lotados, há muitas falhas de operação e pouco se fez para minorar a contaminação durante a pandemia. Não há nessa "relação de consumo" um enorme desequilíbrio contra o usuário?
Mesmo antes da pandemia o cenário no transporte público já era ruim, mal regulado, abandonado, com regras fracas, contratos ruins. A pandemia apenas ampliou e complicou os problemas. Mas muitos desses problemas têm a ver com o financiamento, como eu já mencionei. Os sistemas de transportes pagam por passageiro transportado. Então para o empresário vale a pena ter menos carros de sua frota em circulação, com mais passageiros por carro, porque desta forma ele economiza na operação e ganha mais dinheiro. É um sistema dependente do passageiro.
Agora, com a pandemia, quando os transportes precisariam funcionar sem aglomerações, o sistema se torna absolutamente insustentável. Por isso estamos vendo empresas quebrando, protestos e greves em diversas cidades do Brasil. Goiânia, por exemplo, corre o risco de perder a rede metropolitana de transportes que construiu ao longo de décadas. A pandemia está escancarando erros que já havíamos notado e denunciado. E isso por que não há recursos extra-tarifários.


Nos Estados Unidos, na Alemanha, em diversos outros países que têm sistemas de transportes melhores, mesmo nesses países os governos tiveram que oferecer um auxílio, porque é claro, com a perda de passageiros, os sistemas perdem receita.


O Brasil, que tem um problema mais estrutural, sem um fundo pré-estruturado para os transportes como existem em outros países, e precisaria muito mais de um auxílio econômico federal, de uma participação federal no custeio desse sistema. Mas, ao contrário, o governo federal vetou o auxílio que o Congresso havia aprovado. Então, temos um cenário de "cada um por si", com as consequências que eu já citei: falências, greves etc.

 


Protesto em SP defende a gratuidade e outros direitos da população 60 + Foto: MPL

 

O Idec tem atuado nessa crise? Afinal, o principal prejudicado é o usuário, que depende do transporte público...
O cenário é bem grave e por isso o Idec está tentado atuar com o governo federal, com o Ministério do Desenvolvimento Regional para buscar soluções, nem que sejam paliativas. Nas próximas semanas vamos dialogar com algumas cidades que adotaram soluções interessantes. É o caso de Salvador e de Porto Alegre, que estão apoiando o sistema de transporte com recursos do tesouro municipal. Elas têm menor capacidade financeira do que o governo federal, mas, na medida do possível, proporcionaram algum auxílio, com contrapartidas em gratuidades para os usuários. E Curitiba acabou oferecendo o auxílio mesmo sem contrapartidas. Então, algumas soluções foram boas, mas outras nem tanto. São Paulo aumentou o subsídio para garantir os empregos dos trabalhadores, para não piorar ainda mais a crise social, mas por outro lado, cortou as gratuidades. Então o Idec está promovendo alguns debates positivos, mas como já expliquei o problema é muito estrutural. A crise vai ser grave e vai continuar ainda por algumas semanas ou até por alguns meses.

 

Para concluir, uma pergunta que tem a ver com os 10 anos do Mobilize. Entre 2011 e 2021 o Brasil avançou em políticas e práticas de mobilidade urbana mais sustentáveis e democráticas?
Sim, o Brasil avançou nesses dez anos, mas a mudança é mais visível se nós compararmos a situação atual com os anos 1990, quando o quadro geral era apenas rodoviarista. Agora, neste momento mais cidades estão adotando ideias inovadoras, como as faixas exclusivas de ônibus, ciclofaixas, ou o foco maior em segurança. Também tivemos a aprovação da lei que definiu a Política Nacional de Mobilidade, em 2012.  E até a Lei de Transparência, que permite maior controle social dos gastos públicos em sistemas de transportes. Esses avanços ainda não estão consolidados, mas apontam caminhos para uma cidade melhor, não é? Então, resumindo, nós ainda sofremos pelos resquícios rodoviaristas, mas já temos um amplo debate sobre os temas da mobilidade, no sentido de construir cidades com formas de transporte mais humanas e mais sustentáveis.


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