Como os sons compõem (ou destroem) o ambiente urbano

Sons e ruídos como o do tráfego motorizado afetam o ambiente urbano e podem prejudicar a saúde dos moradores de cidades

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Fonte: Bycs  |  Autor: Bycs/ Mobilize Brasil (edição e tradução)  |  Postado em: 01 de março de 2021

Instalações sonoras na Place Fleurs-de-Macadam, em

Instalações sonoras na Place Fleurs-de-Macadam, em Montreal

créditos: Valérian Fraisse


Nesta entrevista, Catherine Guastavino*, professora associada na Universidade McGill, em Montreal, dá detalhes de sua pesquisa com as "paisagens sonoras urbanas". E explica como os sons ao redor podem interferir - para o bem ou para o mal - na qualidade de vida das populações, devendo portanto ser considerados parte integrante do planejamento das cidades. Clique aqui para ter acesso à pesquisa.

 

O que é, e quais os objetivos da pesquisa Sounds in the City?

Como cientista cognitiva, estou interessada em saber como percebemos os sons ao nosso redor. Sons do dia a dia, mas também sonoridades musicais e todo tipo de ruídos. Sounds in the City é um trabalho em parceria com pesquisadores acadêmicos, mas também com os profissionais que constroem nossas cidades, os artistas e cidadãos. A proposta é repensar o papel do som nos espaços urbanos. Buscamos soluções que possam melhorar o som de nossas cidades, e assim aumentar o bem-estar urbano. Adotamos Montreal como um laboratório vivo para essas investigações. Trabalhamos sobre intervenções concretas, onde vamos experimentando e manipulando a paisagem sonora. Por exemplo, avaliamos os efeitos sobre o usuário de intervenções realizadas em novos projetos para pedestres. Também contamos com colaborações de artistas sonoros em espaços públicos. Os objetivos são melhorar a qualidade de vida de residentes e visitantes em uma cidade que seja a partir daí mais bem administrada e consciente.

 

Qual a importância do som no ambiente urbano?

Os sons realmente desempenham um papel crítico na nossa experiência de cidade, e apesar disso hoje a maioria das cidades trata o som tão somente como ruído ou som indesejado, um incômodo que deve ser mitigado sempre que o problema surge. Mas o fato é que há uma série de sons que podem contribuir para o nosso bem-estar, além de preservar a memória dos espaços e da cidade como um todo. Músicas, conversas, canto de pássaros e barulho de água são exemplos de sons que podem ajudar a nos deixar mais centrados e confortáveis no ambiente urbano.

 

Como a senhora disse, cidades costumam dar mais atenção à redução do ruído; mas como paisagens sonoras podem ter efeito positivo na saúde urbana?

Reduzir os efeitos prejudiciais do ruído certamente é algo que deve ser feito, para evitar aborrecimentos. Outra abordagem, no entanto, é ir além de fazer nossas cidades parecerem menos ruins, e se esforçar para fazê-las soar melhor. Para isso, o som precisa ser reconsiderado de um modo proativo. Precisamos perceber o som não apenas como incômodo, mas como um recurso da mesma importância de outras considerações do design urbano. Desde a concepção inicial até o seu uso a longo prazo, o som deve ser levado em consideração. O método que propomos elimina a suposição implícita de que todos os sons ambientais são negativos, e considera as necessidades dos diferentes usuários de uma comunidade e o que eles precisam para viver, trabalhar, brincar ou relaxar em ambientes sonoros que considerem apropriados. Trata-se de olhar para esses diferentes usuários, para suas atividades e os contextos em que experimentam o som. Tudo isso tem implicações em como os profissionais que planejam e constroem cidades devem projetar os espaços urbanos.

 

O que são marcas sonoras e como elas podem ser melhor usadas para criar ambientes urbanos agradáveis, informativos e seguros?

Marcas sonoras são sons valorizados pela comunidade. Em Montreal, algo muito citado é o TamTams, uma roda de tambores que acontece todos os domingos no Parque Mont-Royal. Faz parte do ambiente e é percebido como uma presença semanal reconfortante. As marcas sonoras também refletem as mudanças ao longo do tempo. Por exemplo, depois de uma tempestade de neve tudo soa mais abafado, algo que é muito característico de minha cidade. Essas marcas enfatizam os aspectos positivos e a relação que temos com os sons, muito além do que normalmente pode ser captado pelas políticas de restrição de ruídos. Nesse sentido, a pesquisa deve identificar, selecionar e criar mecanismos para a preservação dessas paisagens sonoras.

Ainda sobre o parque Mont-Royal; ali ainda não existe uma política para proteger seu som ambiente, e é incrível que tenhamos um parque tão bonito, bem no meio da cidade, mas a sua qualidade sonora não tem como ser totalmente garantida. Refiro-me por exemplo ao ruído do sistema de ventilação de um hospital próximo, que vaza para algumas áreas do parque sem que haja meios para impedir esse som indesejado. A ideia aqui é que um lugar como esse possa ser visto de uma forma mais holística, que venha a refletir os valores da comunidade, incluindo aqui seus sons, além de outros componentes ambientais.

 

A política e o planejamento atuais dependem dos níveis de ruído medidos em decibéis, e a senhora apóia uma mudança das fórmulas puramente técnicas para uma abordagem mais holística e integrada. Pode explicar melhor essa proposta?

Não estou dizendo que devemos nos livrar totalmente dos decibéis e das soluções técnicas. Precisamos deles. Mas devem ser usados como uma peça do quebra-cabeça. O nível de som é apenas um componente, não conta toda a história. Não deixa ver se é um som irritante ou agradável, por exemplo. Também não indica o contexto em que você está enquanto vivencia o som - se está tentando dormir ou saindo com amigos para tomar uma bebida. Esses fatores contextuais não são levados em consideração, mas o som é sempre ouvido por alguém, em algum lugar, fazendo alguma coisa. Tudo isso influencia a experiência do som. Uma política consistente deve levar em consideração essa experiência sensorial e contextual, e o que as comunidades realmente valorizam em suas paisagens sonoras.

Claro que, para mitigar riscos à saúde, precisamos ter limites mínimos e máximos de decibéis, e soluções que identifiquem quais sons são adequados e desejáveis a determinada atividade. De resto, tudo o que pretendemos em nossa pesquisa é conseguir um design de som adequado para o espaço público. Obviamente, o primeiro passo é estabelecer para todas as áreas urbanas o nível de som que não extrapole os limites do que é aceitável às pessoas.

Como dizia, as políticas atuais de controle de ruído atuam após constatar o problema, o que geralmente é um pouco ou muito tarde. Lidar com o som quando o problema já surgiu torna as estratégias para remediá-lo muito caras ou complicadas, como a construção de paredes para bloquear o som. Isso pode funcionar do ponto de vista técnico, mas na prática divide o tecido urbano e não é ideal do ponto de vista paisagístico. Mais uma vez, defendemos que se pense a questão desde o estágio inicial de um projeto, em vez de uma abordagem em partes. É preciso integrá-la a outros elementos do planejamento, considerando em todas as fases a experiência auditiva do usuário final.

 

O ruído do tráfego é uma das maiores fontes de poluição sonora nas cidades. Quais os benefícios e oportunidades de se restringir esse tipo de ruído?

De fato, o ruído do tráfego é o que mais interfere nas cidades, afeta nosso estresse, sono, capacidade de concentração, e consome lenta e continuamente anos de vida saudável. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas na Europa Ocidental mais de um milhão de anos de vida são perdidos anualmente devido à superexposição ao ruído dos veículos automotores, e não há razão para acreditar que isso seja diferente em outras regiões. 

Tudo o que pudermos fazer para reduzir o trânsito trará benefícios importantes para a saúde e a garantia de que não desperdiçamos recursos preciosos e espaços urbanos. Existem áreas na cidade que poderiam servir como espaços verdes, abrigar mobiliário urbano... mas que são subutilizadas, justamente por causa do barulho das avenidas e vias ao longo dessas áreas. Para um modo de vida mais ativo e saudável, o transporte público, a bicicleta e a caminhada são ferramentas importantes e seus benefícios vão além do som. Mas vale lembrar que as ciclovias também podem funcionar como um amortecedor entre ambientes barulhentos e mais silenciosos. Muitas vezes não sabemos o que fazer com esses espaços de amortecimento. Mas eles podem ser usados para conectar diferentes locais e possivelmente fornecer um limite entre as áreas mais silenciosas e barulhentas.

 

Festa de bairro do projeto Terrasses Roy, que avaliou a paisagem sonora nessa comunidade. Foto: Christine Kerrigan

 

A poluição sonora afeta desproporcionalmente mais algumas comunidades do que outras. Como trazer equidade, garantindo melhores paisagens sonoras também às parcelas mais sofridas da população?

Sem dúvida, existe uma injustiça ambiental distributiva quando se fala em poluição sonora. Pessoas com status socioeconômico mais baixo estão expostas a níveis mais elevados de ruído. Historicamente, essas comunidades também estão sujeitas a  barulho de construção, estradas, aeroportos etc. Até recentemente, não se considerava essa questão, o que significa dizer que uma infraestrutura permanente era implantada sem equacionar os efeitos adversos do som urbano para a saúde, o meio ambiente e a justiça social. Até então deixadas de fora das discussões sobre a política de ruído no planejamento urbano, as comunidades agora passaram a ser incluídas em todo trabalho de intervenção na paisagem sonora, o que permite entender suas perspectivas e remediar problemas. O ruído urbano engloba o equilíbrio social, e muitas vezes o conflito de interesse entre os diferentes usuários da cidade deverá ser minimizado.

Até aqui, o problema foi analisado principalmente sob o prisma da mitigação de ruído. Mas outra maneira de ver isso é em termos de acesso a paisagens sonoras de alta qualidade. É o que chamamos de paisagens sonoras restaurativas, às quais podemos ir e buscar refúgio. Significa ter maior acesso a parques agradáveis e silenciosos, por exemplo. Devemos fazer mais para minimizar os resultados negativos da poluição sonora, mas também para promover resultados positivos de certos espaços. Há evidências de que, se estiverem em uma paisagem sonora de alta qualidade, as pessoas ficarão ali mais tempo e interagirão mais umas com as outras. Um dos meus alunos de doutorado, Christopher Trudeau, está olhando para a injustiça ambiental da perspectiva da poluição sonora, mas também do acesso a paisagens sonoras de alta qualidade. 

É importante notar que o silêncio não é o objetivo final. Durante a pandemia, pudemos ver o momento em que as pessoas observaram que tudo andava muito quieto e assustador. À época do primeiro bloqueio, nossa pesquisa descobriu que as pessoas estavam felizes com a redução do ruído do tráfego, mas sentiam falta do som da atividade humana. Parecia meio da noite no meio da tarde... Silêncio não é necessariamente bom: você deseja que os sons certos estejam presentes e os indesejáveis sejam removidos. Isso é algo que aprendemos durante a covid-19.

 

Como a relação entre paisagem sonora e saúde comunitária pode ser utilizada para justificar a promoção de políticas voltadas a pedestres e ciclistas?

É um desafio em termos de governança, pois há uma interdependência entre o som e outros fatores, como mobilidade, sustentabilidade etc. As decisões que são tomadas sobre bicicletas, ruas compartilhadas ou redes de tráfego, por exemplo, terão um efeito sobre o ambiente sonoro. Como disse, o problema é que atualmente o som é considerado isoladamente e não na estratégia de planejamento. Também aparece como uma reflexão tardia, especialmente na América do Norte. Na Europa, já existem mais iniciativas pró-ativas que procuram abordar o som nos ambientes urbanos.

Estamos trabalhando em estreita colaboração com os governos municipais, como a cidade de Montreal, mas também com outras esferas de governo, com o Ministério da Saúde e Meio Ambiente. O objetivo é tentar ver como isso pode ser transformado em uma política integrada, que considera os sons na relação com o planejamento urbano e o meio ambiente, mas também administrada nos níveis municipal, regional e federal. Os formuladores de políticas e tomadores de decisão estão percebendo a extensão do problema e começando a trabalhar juntos. Como resultado, há uma série de iniciativas interessantes que estão buscando abordar o som dessa forma mais holística e proativa.

 

*Catherine Guastavino é professora associada na McGill University, onde realiza pesquisas em parceria com outros cientistas para a cadeira Sounds in the City, que inclui áreas como paisagem sonora, áudio espacial, localização auditiva, percepção multissensorial e percepção e cognição musical.

 

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Max Jordan Nguemeni Tiako, pesquisador do Center for Emergency Care and Policy da Universidade da Pennsilvania, nos EUA, explica (em inglês) como os sons e ruídos interferem na gravidez nas doenças cardiovasculares e em outros aspectos da saúde humana


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