Doutora em mobilidade a pé, blogueira do Mobilize, ativista pelos direitos do pedestre, a arquiteta e urbanista Maria Ermelina Brosch (Meli) Malatesta atuou durante três décadas na Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo. E neste mês de fevereiro ela retoma a terceira edição do curso "O Desenho da Cidade para a Mobilidade a Pé", na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um curso voltado especialmente a profissionais que pensam (e projetam) as cidades brasileiras. Nesta entrevista, realizada remotamente, Meli defende a necessidade de repensar as cidades, com os pés no chão, a partir das calçadas, passarelas e escadarias por onde passam diariamente milhões de brasileiros
Meli Malatesta: , doutora em mobilidade a pé e blogueira do Mobilize Brasil Foto: Arquivo pessoal
Por que um curso sobre planejamento para a mobilidade a pé? Que tipo de aluno você espera receber? E por que novamente a Universidade Mackenzie está oferecendo esse programa?
É um curso de educação executiva, dirigido a pessoas que já têm uma formação profissional e que ocupam posições de tomada de decisão, de gestão, especialmente nas cidades. É como um curso de pós-graduação sobre mobilidade a pé. O programa apresenta uma abordagem mais completa, porque traz tanto a conceituação do que a gente pode chamar de engenharia de tráfego, de planejamento do sistema viário, como também o lado do urbanismo, da convivência e do uso do espaço público. A Universidade Mackenzie está repetindo esse curso porque o setor de pós-graduação, de educação executiva, considera que se trata de um tema importante e muito pertinente a pessoas de várias áreas, porque tudo envolve a mobilidade a pé.
Mas, é necessário um curso para projetar uma infraestrutura para uma coisa tão simples como caminhar?
Andar a pé é uma forma de deslocamento tão básica, tão primordial, que muitas vezes não é encarada como um modo de transporte. Mas, como sabemos, foi a forma primeira que os seres humanos usaram para ir de um local ao outro. Por essa simplicidade, muitas vezes o caminhar é desconsiderado pelos técnicos e mesmo pelas pessoas leigas. As demais formas de mobilidade, como o transporte coletivo, o corredor de ônibus, as linhas de metrô, e o próprio sistema viário são facilmente entendidos como redes. Mas, quando se fala dos deslocamentos a pé, esse conceito de rede fica difícil de ser associado.
Porque é uma coisa fácil, já que todo mundo anda a pé, sem precisar de nenhum instrumento, ou adquirir um carro, tirar habilitação.
Geralmente, quem faz o planejamento das redes de transporte, seja sobre pneus ou sobre trilhos, sempre imagina o usuário já embarcado. Não ocorre aos planejadores que esses usuários chegam e saem dessas redes caminhando, utilizando as redes da mobilidade a pé.
E não dá pra pensar que a rede da mobilidade a pé utiliza só a calçada que está junto à pista dos veículos. Quem caminha usa outras infraestruturas para se deslocar, como as escadarias, vielas e até as galerias comerciais, não é? Tudo para fazer o nosso trajeto mais curto, mais confortável, mais seguro...Daí a importância do curso, porque justamente ele vai apresentar toda essa conceituação às pessoas.
O curso propõe que as políticas de mobilidade a pé sejam proativas, ou seja, que ao pensar o uso desses espaços públicos de mobilidade, os gestores públicos partam do princípio da mobilidade a pé, que hoje em dia não é considerada no planejamento das cidades. O curso pode mudar o olhar dessas pessoas, como se fosse uma chavinha para encarar a cidade de outra forma. É diferente, por exemplo, das políticas reativas, como as políticas de segurança de pedestre, que são as mais praticadas hoje em dia em função da forma como os espaços públicos foram tratados no passado. É muito melhor partir do zero do que consertar um espaço mal resolvido. Por isso o curso é importante.
Se você fosse uma secretária de mobilidade ou uma executiva em alguma prefeitura, por onde você começaria as melhorias para estimular o caminhar como forma de transporte?
Eu não tenho a mínima vontade de ter um cargo político. Meu perfil é muito mais técnico e talvez eu pudesse ser uma assessora de um secretário... A primeira sugestão seria uma revisão na distribuição do espaço público, por onde ocorre a mobilidade urbana.
Eu procuraria uma divisão mais justa dos espaços nas ruas, e também faria uma revisão dos tempos semafóricos para atender tanto a quem esteja dentro dos carros como quem está caminhando. Então, é uma mudança que envolve espaço e tempo. Na prática, isso se refletiria em um programa de revisão das calçadas, da largura, do uso, e da regularização das calçadas.
Eu daria um tempo para que os proprietários dos imóveis se adequassem às normas, para concicliar os acessos de carros particulares com a necessidade de calçadas transitáveis, de forma que eles resolvam os acessos dentro do espaço privado e acabar com aqueles degraus chanfrados nas calçadas, que são resultantes das rampas de garagem. Essa seria minha primeira proposta. Também faria um programa para implantar rampas de acessibilidade nos cruzamentos, com guias rebaixadas de acordo com as normas existentes e incluir o piso tátil direcional e de alerta nos pontos mais críticos das cidades.
Você falou também sobre os tempos de espera e abertura dos semáforos...
Sem dúvida, também é necessário revisar o manual brasileiro de programação semafórica. Para a definição dos tempos de abertura, no caso de veículos, a metodologia para cálculo considera a demanda. Ou seja, faz-se uma contagem manual ou por equipamento de quanto tempo é necessário pra você escoar aquela quantidade de veículos. Então, eles vão dar esse tempo de verde. Agora, já para as pessoas que estão a pé, de bicicleta, em cadeira de roda, carrinho de bebê, o cálculo de tempo é feito pela distância que a pessoa precisa percorrer para a travessia da rua. Calcula-se com base em uma velocidade média hipotética, um valor médio que não é aplicável para toda a diversidade de pessoas que a gente tem na cidade: as crianças, as pessoas mais velhas, os obesos, ou quem está empurrando um carrinho com uma carga, um carrinho de bebê, essas pessoas andam mais devagar. Também seria preciso considerar o tempo necessário para escoar aquele pelotão de pessoas que está esperando para atravessar. Mas hoje em dia as coisas não funcionam assim e adotam-se duas metodologias diferentes, que acabam privilegiando quem está nos veículos. O pedestre espera um longo tempo e tem apenas alguns segundos para atravessar a rua.
Essas mudanças certamente provocariam reações fortes de parte da sociedade, da imprensa...
É verdade. Para montar essa rede de mobilidade a pé eu precisaria ter todo o apoio do prefeito, do secretário de finanças, da câmara municipal, de forma que se possa reestruturar a prefeitura e sua burocracia para dar prioridade aos pedestres. Talvez até criar um departamento responsável pelas calçadas e travessias, que envolva também outros equipamentos, como as ruelas, escadarias, enfim, tudo isso...Eu também valorizaria os espaços das ruas, como locais de convivência, de encontros, de maneira a estimular as pessoas a caminharem mais.
E o que parece ser uma despesa inicial se reverteria em uma economia muito grande em segurança pública, porque em espaços públicos bem ocupados você não precisa gastar muito em vigilância. Mas a principal economia viria da área de saúde, porque pessoas que se deslocam caminhando, estão praticando exercício físico e naturalmente irão adoecer menos.
Um outro ponto positivo seria a redução da pressão sobre o transporte público, porque essas caminhadas de um a três quilômetros evitarão a lotação excessiva de ônibus e metrôs, o que é muito bom neste momento de pandemia. Desta forma, a rede de transporte coletivo ficaria para as viagens que têm uma distância maior. E mesmo o trânsito de veículos particulares pode ser reduzido, porque uma parte das pessoas deixará o carro e adotará a caminhada em parte de seus deslocamentos. Mas, para fazer tudo isso é preciso coragem e apoio político.
Curso: O Desenho da Cidade para a Mobilidade a Pé
Inscrições até 13 de fevereiro
Inscrições no site da FAU Mackenzie (Educação a Distância)
Conteúdos:
1. A importância da Mobilidade a Pé para o futuro das cidades;
2. Conceituação e características da Mobilidade a Pé;
3. Legislação federal, estadual e municipal que regem as políticas públicas de Mobilidade a Pé;
4. Segurança e Acidentalidade da Mobilidade a Pé;
5. Conceituação da Rede da Mobilidade a Pé e componentes de sua infraestrutura;
6. Metodologias quantitativas e qualitativas para avaliação dos espaços urbanos e infraestrutura da Rede da Mobilidade a Pé;
7. Políticas públicas de mobilidade a pé proativas e retroativas;
8. Projeto funcional para a Mobilidade a Pé.
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