Uma ciclofaixa sobre uma calçada no Centro de São Paulo instigou a professora Helena Degreas a discutir as prioridades na mobilidade urbana. Por que não tirar uma faixa do asfalto em vez de roubar espaço aos pedestres?, questiona ela em seu texto, publicado hoje (26) no site da Jovem Pan.
Recentemente, a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes da Prefeitura de São Paulo implantou uma nova ciclovia com 281 metros de extensão ao longo do viaduto Nove de Julho, no lado par, viabilizando o acesso das pistas existentes nas ruas Santo Antônio, Consolação e Quirino de Andrade à entrada da estação Anhangabaú (linha 3-Vermelha do Metrô). Embora bem-vinda e necessária, a implantação da ciclovia sobre as calçadas — uma ampliação da mobilidade da população na cidade — ainda demonstra que a prioridade das intervenções realizadas pela secretaria ainda é do automóvel. O compartilhamento está previsto em leis, normas e manuais, mas, ainda assim, fica a questão: por que colocar a ciclovia sobre a calçada e não repensar o dimensionamento das faixas dedicadas aos automóveis? Será que a prioridade ainda é do carro?
A pesquisa Origem Destino do Metrô de São Paulo mostra que são realizadas cerca de 42 milhões de viagens diárias na região metropolitana de São Paulo. Com o objetivo de colaborar com a leitura e visualização da base dados da pesquisa, realizada em 2017, a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo e o Instituto Multiplicidade Mobilidade Urbana desenvolveram uma tabela. Das viagens citadas, 31,8% foram realizadas a pé e 0,9% de bicicleta. Ou seja, a pesquisa com base domiciliar mostra que para ir ao trabalho, à escola e às compras (os três principais motivos), um terço dos deslocamentos é feito por pedestres e ciclistas. Se hoje fosse realizado um novo levantamento sobre os modos de locomoção na cidade, os resultados certamente apresentariam um cenário diferente — os dados sobre deslocamentos a pé e por bicicleta seriam mais robustos.
As consequências resultantes da pandemia levaram não apenas ao afastamento social da população como protocolo sanitário, mas também elevou o número de desempregados graças ao pífio desenvolvimento econômico nacional. A bicicleta apresentou-se como alternativa para redução dos gastos de transporte e geração de renda complementar, com o crescimento de entregas de mercadorias por bicicletas em todo o país. A Associação Brasileira do Setor de Bicicletas apontou, em pesquisa realizada entre 15 de junho e 15 de julho do ano passado, um crescimento de 118% em comparação ao mesmo período de 2019. Por sua vez, a pesquisa Viver em São Paulo: Especial Pandemia, realizada pela Rede Nossa São Paulo, mostra que, como consequência da pandemia, 38% da população entrevistada continuará a se deslocar mais a pé e que e 20% pretendem usar mais a bicicleta no dia a dia depois que o isolamento social não for mais necessário. Resumindo, não haverá calçadas suficientes para tantos pedestres e ciclistas.
Ampliar os modos de locomoção a pé e de bicicleta nas cidades é parte das discussões que compõem a agenda urbana internacional que trata de políticas para a construção de cidades e comunidades sustentáveis e de populações saudáveis, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados das duas pesquisas mostram uma tendência que não tem mais volta: o modo ativo, ou seja, aquele realizado por locomoção a pé e de bicicleta, veio para ficar em nossas cidades. As pesquisas já mostram que pedestres e ciclistas realizam mais viagens diárias do que automóveis particulares e que a tendência é de incremento do modo ativo nos espaços públicos. Nossas calçadas, quando existem, são estreitas para o fluxo de pessoas e têm manutenção ruim, como mostra o relatório da campanha Calçadas do Brasil do Mobilize.
Por esta ótica, é possível afirmar que todos os prefeitos da região metropolitana de São Paulo deveriam investir na construção, reformas e manutenção de calçadas para melhor acolher seus cidadãos. A afirmação também é válida para a construção, remodelação e reforma do sistema cicloviário. Se a prioridade é melhorar a mobilidade da população, a eliminação ou a redução das faixas de rolamento destinadas aos automóveis deveria ser a prioridade. O compartilhamento dos espaços ocorreria apenas em situações extremas, em que alternativas viárias são inexistentes.
Desconheço o método e os instrumentos aplicados para o caso da implantação da ciclovia sobre a calçada do viaduto Nove de Julho. Um olhar mais apurado junto ao local aponta que o volume de pessoas circulando ao longo da semana é significativo por se tratar de uma área repleta de instituições públicas. A convivência harmoniosa entre pedestres e ciclistas pode não ocorrer da forma como se espera. É possível que o compartilhamento transforme-se em disputa de espaço público.
Já as faixas de rolamento destinadas aos automóveis permanecem intactas, evidenciando aos pedestres e ciclistas sua autoridade e preferência sobre o espaço urbano. As políticas públicas e suas ações ainda mostram que se algum compartilhamento tiver que ocorrer na cidade, será entre ciclistas e pedestres nos espaços públicos que restaram do sistema viário. Nos automóveis, ninguém mexe.
Ao recém empossado secretário municipal de Transportes, desejo um excelente trabalho. E que, em suas ações, tanto pedestres quanto ciclistas recebam não apenas a sua atenção especial, mas também a destinação de verbas adequadas à realização de mais calçadas e pistas cicláveis, tornando sua locomoção segura e eficaz. Numa cidade em que o poder público prioriza o coletivo na sua forma de planejar, os seus espaços são compartilhados por todos os cidadãos. É uma cidade mais justa.
Nota: Texto originalmente publicado em 26 de janeiro de 2021 no site da Jovem Pan com o título "Pedestres e ciclistas nas calçadas: compartilhamento ou disputa de espaço?"
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