Jornalista pedala 300 km por semana para entregar tortas

"Não tem distância pra mim", diz Diego Salgado, que criou a empresa 'Tortas do Pai' para ajudar na renda familiar durante a pandemia. Desde maio já pedalou quase 8 mil km

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Regina Rocha/ Mobilize  |  Postado em: 11 de dezembro de 2020

Diego pedala por toda São Paulo para fazer entrega

Diego pedala por toda São Paulo para fazer entregas

créditos: Renan Bossi/Strava

Diego Salgado é jornalista esportivo do site UOL. Ciclista viajante, ele até já circulou pela Europa e cruzou a Cordilheira dos Andes pedalando. Em 2020 planejava atravessar todo o território da Nova Zelândia com sua bike, mas os planos tiveram que ser adiados por causa da pandemia. 

Diego aproveitou a crise para "inventar" um pequeno empreendimento familiar. Desde maio ele se dedica a entregar as tortas produzidas por seu pai, Antonio, e nessa empreitada ele já percorreu milhares de quilômetros pelas avenidas, ruas e ladeiras de São Paulo.

Nesta entrevista, ele conta como tudo começou, aborda as dificuldades enfrentadas no trânsito paulistano, fala do prazer de pedalar e também revela um pouco da realidade dos entregadores de comida, com quem ele convive diariamente.

  

Conte como foi o começo da iniciativa das "Tortas do Pai"?
Tudo começou no segundo mês da pandemia. Meu pai trabalhava como motorista de aplicativo, mas faz parte do grupo de risco da covid-19. E por isso,  precisou ficar isolado em casa. As contas já iam se acumulando, e ele muito propenso a voltar às ruas. Preocupados, eu e meu irmão apelamos para que ele não saísse. Foi quando a namorada dele teve a ideia de produzir tortas congeladas para vender; é uma receita de família, que meu pai fazia só para nós de casa, aos fins de semana. Inicialmente a ideia não o agradou, pois ele achava que não ia vender, mas nós o convencemos. Fiz então uma postagem no twitter oferecendo as tortas; era praticamente um apelo: explicava que meu pai não podia sair, mas tinha de trabalhar para se manter, honrar os compromissos...

Estipulei a meta de vender 50 tortas, o suficiente para pagar ao menos uma das contas em atraso. Então, para minha surpresa, na primeira postagem chegaram 800 mensagens querendo comprar nossas tortas.

Lembro que virei a noite respondendo mensagens, vindas principalmente de São Paulo, mas também do Nordeste, do Rio de Janeiro, do Sul do país... Claro, ficamos apenas com os pedidos daqui, e lembro que já nessa primeira leva vendemos cerca de 250 tortas, cinco vezes mais do que imaginava. A minha ideia, desde o início, era fazer as entregas todas de bicicleta, um modo sustentável e barato, que possibilitaria cobrar uma taxa de entrega mais justa. Sabia que sozinho conseguiria entregar 50 tortas, e a primeira encomenda já ultrapassava isso em muito. Foi uma loucura! Fiz uma planilha com os endereços e passei a organizar, traçar rotas no mapa, um trabalho muito, muito complicado... As primeiras semanas foram bem árduas porque me encarreguei de todo o planejamento e da parte financeira também, pois queria deixar meu pai só com as tortas, com a cabeça tranquila para cozinhar. 

 

Diego e seu pai, Antônio, em mais um dia de entrega de tortas caseiras congeladas. Foto: Renan Bossi/Strava 

 

Nas entregas com bike por São Paulo, quantos quilômetros você já percorreu?
Começamos esse trabalho no dia 25 de maio, então estamos na 29ª semana. Neste próximo domingo (13), terei atingido a marca de 7.950 km percorridos com bicicleta. Normalmente, faço 300 km por semana, pedalando de terça a domingo, e folgando apenas na segunda-feira. Sempre pedalei, em São Paulo há vinte anos... Não tem distância para mim, costumo dizer, faço entregas em todos os bairros. Meu pai é da região de Pinheiros e eu moro no Butantã (zona oeste). O que me falta é tempo, porque tenho outro trabalho, sou repórter. Quando não estou de plantão em um fim de semana, e tenho o dia livre, atendo lugares mais distantes, como Vila Prudente, Interlagos, Tatuapé, Vila Carrão, Mooca, Freguesia do Ó e também Santana. Então, disposição eu encontro. Nessas pedaladas tenho observado mais a cidade, de um jeito mais minucioso, como ainda não tinha feito, mesmo sendo ciclista há tanto tempo. Enfim, está sendo um bom momento para entender a cidade, me deslocar até bairros distantes que nunca tinha ido, e experimentar um pouco mais a estrutura para o ciclista, ver essa transformação. Algo muito gratificante.

 

E como são os caminhos para o ciclista na capital paulista?
São Paulo é uma cidade em transformação, está bem diferente daquela que tínhamos no começo dos anos 2000. Há uma evolução, lenta é verdade, mas real. Agora, com a pandemia, a gente vê mais adeptos da bicicleta pelas ruas, e é interessante ver essa mudança enquanto faço entregas. Há muita gente aderindo à bike, enxergando-a como meio de transporte. Mesmo assim, com a retomada de atividades da pandemia, percebo que a cidade continua complicada para pedalar, com muitos caminhos acidentados. É claro que, em meio a tantas subidas e descidas, com o tempo aprendi a pegar atalhos, a encarar os bairros mais difíceis de maneira mais tranquila.

Outra coisa é inegável: os trechos com ciclovia ajudam bastante! Embora as ciclovias ainda não estejam completamente conectadas, é importante que exista essa infraestrutura, mesmo em um trecho pequeno; já é um alento para o ciclista, dá para pedalar mais tranquilamente, sentir-se mais acolhido.

Quanto às "pedras no caminho" do ciclista, tem também a parte do asfalto, alguns trechos esburacados por onde é bem difícil passar. Na última semana, me deparei com muitos galhos nas ciclovias, e a prefeitura vem demorando para limpar. Outro dia tive de parar e tirar esses restos de árvores do caminho... o que precisava era um pouquinho mais de atenção de parte da administração. Agora, difícil também é lidar com os carros, por exemplo, os que estacionam nas ciclovias.


A propósito, como é seu relacionamento no trânsito com os motoristas?
No começo da pandemia, é bom frisar, reparei que os motoristas estavam mais cuidadosos, até reinava uma harmonia um pouco maior entre motoristas e ciclistas. Pena que aos poucos isso foi se perdendo, como observo nas últimas semanas. Curioso, algo que me ajuda muito é pedalar com a mochila; com as tortas nas costas parece que o pessoal 'pega mais leve', talvez por entender que estou prestando um serviço. O motorista dá mais chances no trânsito, dá a preferência e mais espaço ao ciclista. O mesmo não ocorre quando estou pedalando em dias de folga, sem mochila. 

 

E o contato com os outros entregadores? Você tem conversado com eles?
O que noto em primeiro lugar é que tem muita, mas muita gente pelas ruas fazendo entregas... Vejo isso desde que comecei com as tortas em maio. Bem, as condições para esses trabalhadores não são as melhores, não é mesmo? Fica evidente quando observamos grupos de entregadores parados nas calçadas e praças, esperando pelos pedidos, sem pontos de apoio para fazer o seu trabalho. Na esquina da avenida Faria Lima com a Cidade Jardim, por exemplo, muitos entregadores ficam sentados no chão à espera de uma chamada do aplicativo. Um lado bom é que há muito auxílio mútuo, entre eles, entre nós... É uma troca gratificante: eu ajudo um entregador, ele também me ajuda. Outro dia, por exemplo, fiquei sem o mapa - meu celular tinha molhado e não funcionava - e precisava achar um endereço. Estava assim, sem saber o que fazer, e logo um ciclista me deu uma força.

Então, há essa troca constante. Você de repente para no semáforo, olha para um ciclista, para outro, faz um aceno com a cabeça... algo banal, mas que estreita relações. Sempre há um cumprimento, um aceno, é algo comum de acontecer. A gente sabe: todo mundo ali está na luta para seguir em frente; e no meio de uma pandemia, então, é tão difícil...

O trabalho com entregas, para a maioria, tornou-se uma saída, mesmo sob condições às vezes complicadas. Muitos, por exemplo, usam bicicleta alugada, não têm seu equipamento. O jeito é lutar pela melhoria das condições para essas pessoas. Nessa convivência com esse pessoal, também tenho observado que muitos adaptam uma espécie de motor na bicicleta, e circulam pelas ciclovias na velocidade acima do permitido. Um problema isso, principalmente na Paulista, onde há muitos semáforos e pedestres atravessando. O que faço é tentar instruí-los, até porque já presenciei acidentes, e isso é péssimo. Com esse motor, a bicicleta ultrapassa fácil os 20 km por hora. Então acho importante explicar, ao menos para que tenham consciência desse risco.

 

Ciclovias são um alento para o cliclista, mas há falta de limpeza e manutenção, diz Diego. Foto: Renan Bossi/Strava 

 

Falando em problemas, quais as maiores dificuldades que você tem enfrentado para realizar esse serviço de bike?
Olha, a maior dificuldade ainda é na relação com os motoristas. Como disse, nas últimas semanas sinto um retrocesso na convivência no ambiente da rua. Parece que os motoristas andam mais impacientes com os ciclistas, não entendem que a bicicleta é um meio de transporte como qualquer outro, e tem o direito de ocupar uma faixa na rua... Enfrento isso quase que diariamente, e até venho mudando minha postura no trânsito: antigamente eu já ia para o confronto, sabe? Já chegava falando um pouco mais alto, dizendo: "Olha, o Código Brasileiro de Trânsito permite, dá uma olhada aí...". Mas, desde que comecei a fazer entregas, passei a adotar outra postura, porque, de verdade, vi que muitos motoristas não sabem mesmo que uma bicicleta pode ocupar aquele espaço, não conhecem a lei. Então, minha postura hoje é mais tranquila, tento abrir os olhos dessas pessoas; com toda a educação, paro ao lado do carro - aliás, quando consigo, porque muitas vezes o carro passa rápido, impossível alcançá-lo - e tento argumentar. Essa postura de explicar, conversar tranquilamente, tem ajudado bastante. Penso que tenho conseguido educar ao menos alguns motoristas - um por dia e já é uma semente plantada... Um trabalho de formiguinha, sabe? 

 

E na relação com os pedestres, há conflitos também?
Da mesma forma que com os motoristas, acho que a relação do ciclista com o pedestre tem que ser harmoniosa. Todos tem que se entender, incluindo aí os pedestres. Não pode ser a lei do mais forte. Se nós ciclistas somos mais fracos em relação aos carros, temos o dever de proteger o mais fraco, que é o pedestre, devemos ter essa consciência. A regra para o ciclista é: não andar na calçada, dar sempre passagem ao pedestre, entender que às vezes quem vai a pé enxerga a ciclovia como um ambiente mais seguro, ou escapa de calçadas ruins. Então, o certo é ser paciente com quem vai pela via, é o mais importante. 

 

Sobre as viagens de bike que você tem feito, conte onde já esteve...
Já fiz duas cicloviagens; mas duas de 2.000 mil km! A primeira fiz em 27 dias, do Rio Grande do Sul até Valparaíso, no Chile; a segunda durou 29 dias, de Barcelona, na Espanha, até Amsterdã, na Holanda. Pedalei, em média, 70 km por dia, o que não é tão pesado assim... até porque hoje, entregando tortas, faço mais ou menos o mesmo: 70 km por dia, ou 300 km por semana. Tenho mantido essa média, mas pedalar na cidade é bem mais complicado... Você acaba usando mais o freio, mais as marchas; além disso, na estrada tem menos buraco. Então, acho mais tranquilo pedalar na estrada. Costumo dizer que na cidade eu estou treinando... Com esse "treino" aqui por nossas vias, pedalando com peso nas costas e muito buraco, penso que na próxima cicloviagem vou achar bem mais fácil a aventura. Porque pedalar por São Paulo é um "baita treino"! 

 

E em 2021, planeja retomar esse tipo de experiência? Tem alguma viagem em mente?
Tinha uma terceira cicloviagem marcada para começo de abril. Planejava atravessar a Nova Zelândia (Oceania) de ponta a ponta, de norte a sul. Mas, faltando uns quinze dias para embarcar, o país fechou as fronteiras, por causa da pandemia. Então, a viagem foi suspensa, e continua assim por enquanto. Estou com passagem comprada, esperando para ver o que acontece nos próximos meses... Já meu "plano B" é pegar um avião até São Luís (Maranhão), e ir descendo, talvez até São Paulo, o que daria cerca de 4 mil km, ou até o Chuí (RS), a última cidade do Brasil antes do Uruguai. Nesse caso, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, eu percorreria cerca de 85% da costa brasileira. Provavelmente será essa a minha minha próxima viagem, em maio. Teria 40 dias para fazer esse trajeto. Se até São Paulo, ou até o Chuí, vai depender da minha disposição; devo definir qual o destino nas próximas semanas. O que mais gostaria mesmo era pedalar por praticamente todo o litoral brasileiro, ir recortando pela costa,  algo que me fascina. Nas duas viagens que fiz, visitei nove países de bicicleta, mas conheço muito pouco do Brasil; então, acho justo, e se der certo vai ser uma experiência incrível atravessar todos os estados do Nordeste, do Sudeste e do Sul do país. 

 



Para quem ficou com água na boca, e gostaria de experimentar as "Tortas do Pai", é só clicar aqui e fazer seu pedido. Mas, atenção: vale lembrar que Diego somente faz entregas de bicicleta na cidade de São Paulo.

 

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