As crianças e seus caminhos

Lembra do dia em que nossos pais nos deixaram sair sozinhos para a rua? No mês das crianças, este artigo fala sobre os desafios que as cidades impõem aos pequenos

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Osvaldo Martins*  |  Postado em: 05 de outubro de 2020

Criança caminha com seus pais
créditos: Imagem: PxHere Creative Commons

“Cuidado ao atravessar a rua! Olha para os dois lados!” Levante a mão quem nunca ouviu essas recomendações dos pais quando era criança. E ainda: “Cuidado, não fale com estranhos"; "Vá pela calçada!" ou, "Segura a mão do seu pai". Frases que são repetidas tantas vezes que as carregamos para toda a vida, como um conhecimento popular que traz em si uma verdade indiscutível.


Como sabemos, crianças são seres que trazem em si a pureza e ingenuidade que as torna tão especiais. Por isso, instintivamente, os adultos se sentem responsáveis por elas. Quem nunca ajudou uma criança que apareceu em sua frente a atravessar a rua?


Um dos maiores dilemas para os pais é saber quando já podem deixar os pequenos irem sozinhos aos lugares. É uma dúvida e tanto saber quando os filhos já têm autonomia e discernimento para sair e voltar. E mesmo nesse momento, resta a inquietação quanto aos perigos a que estarão expostos lá fora, “na rua”.


Claro que isso varia de região para região, estrato social, estrutura pública local etc... Mas a dúvida continua universal: deixar ou não nossas crianças saírem? Porque, mesmo pequenas, elas são gente, tem o direito de exercitarem sua liberdade, sua cidadania.


Segundo o IBGE-Educa, se o Brasil tivesse 100 pessoas, 17 delas seriam crianças. Destas, uma em cada dez teria algum tipo de deficiência. E quanto ao local de moradia, 83% vivem em áreas urbanas e 16% em áreas rurais, segundo os dados oficiais. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que as crianças tem diversos direitos, entre os principais destacam-se: proteção, respeito e ajuda no seu desenvolvimento.


E o que isso tem a ver com crianças caminhando? Muita coisa, ou tudo: os pequenos são absoluta prioridade, em qualquer país do mundo, está claro. Decorre daí que assegurar o seu ir e vir com segurança e dignidade é também uma questão essencial, e que uma cidade decente deve contar necessariamente com boa infraestrutura para que as crianças possam se locomover sem se expor a perigos tais como: motoristas alucinados pela pressa e motoqueiros “cachorros-loucos”. As ruas e calçadas de uma cidade são, assim, a teia que dá acesso a todos estes direitos fundamentais, como educação, saúde e lazer e, por lógica, a mobilidade, também digna deve ser vista como direito fundamental.

 


Pense rápido: Há uma criança na imagem acima; você a viu? Então... o motorista também não.
A placa do posto, colocada em local errado, cria um ponto cego para motorista e pedestres,
num cruzamento de duas avenidas de alta circulação.
Foto: arquivo do autor.




Uma paisagem tão bonita
Se quando bem pequenas as crianças são vistas acompanhadas dos mais velhos, já a partir de uma certa idade (sete, oito, nove anos... varia conforme o critério e entendimento dos pais) elas passam a andar sozinhas, aqui e ali: brincam nas ruas, nos condomínios, e algumas até arriscam uma volta no quarteirão.


Um pai, mãe, avó ou tio, quando deixa a criança sair para realizar uma tarefa simples, que dá a ela responsabilidade e prazer, como ir buscar pão na padaria, pensa nos muitos perigos a que o pequeno estará exposto. “Será que alguém vai mexer com ele?", "Algum cachorro pode atacá-lo", "Será que ele não vai se perder?", "Os carros andam muito rápido, não respeitam ninguém”... Dúvidas cruéis que ocorrem só de pensar que algo de ruim pode acontecer. E se é hora de avaliar se seu filho já pode ir para a escola sozinho, logo você ficará preocupado com a segurança do menino, caminhando por uma cidade desestruturada, fria, indiferente.


Em outros tempos, as ruas já foram o espaço da criança: eram seu parque, sua quadra de esportes, centro de convivência e escola informal (em alguns bairros de periferia e sobretudo nas cidades pequenas, muitos lugares ainda são assim). Mas, como sabemos, o fluxo dos carros cada vez mais se intensifica, e as ruas que eram tranquilas passam a ter movimento igual ao das avenidas. Já não é possível empurrar a “tonquinha” do seu filho, sem pressa, aproveitando o momento.


Paradoxalmente, isso acontece em uma época em que tentamos tirar nossos filhos do celular, fazê-los tomar sol e brincar. Contudo, já não temos as ruas para as pessoas. Caminhamos na direção inversa, como no filme Wall-E (Disney, 2008): estamos desaprendendo a andar e deixando o lixo se espalhar pelo mundo até ficar impossível viver. Acidentes de trânsito são a principal causa de óbitos de crianças de 0 a 14 anos no Brasil, conforme estatísticas da Oscip Criança Segura, com base em dados do Ministério da Saúde.


Pense ainda que, se uma criança torce o tornozelo ou cai de cara estatelada no chão por causa de uma via esburacada, isso não é contabilizado, não vale como acidente de trânsito. E por quê? Porque trânsito se tornou uma palavra gasta, associada a tráfego de automóveis, quando na verdade, segundo o dicionário, trânsito quer dizer trajeto, circulação, deslocamento de pessoa, animal ou objeto. Para ver o quanto somos condicionados desde pequenos a achar que rua é para o carro; o movimento do carro é o trânsito e você, pedestre, é o que sobra.


Problema escolar
Viaje comigo: Uma garotinha de 12 anos sai todos os dias para ir à escola, e leva junto seu irmãozinho de 9, pois sua mãe está no trabalho. Ela anda cinco quarteirões, cerca de dois quilômetros... mas tempo e distância podem ser relativos, porque sua mochila com livros e cadernos pesa quatro quilos, a do seu irmão três, é outubro e faz 29 graus, e tudo isso somado, a mochila fica mais pesada. Eles atravessam duas avenidas, três ruas sem calçada, uma ladeira com calçadas que são como escadas em degraus de até 50 cm, e têm de se desviar de montanhas de lixo espalhados pelo caminho. No trajeto, um motoqueiro passa cortando a lombada pelo canto e tira fina de seu irmãozinho que anda de mãos dadas com ela; um cão avança no portão toda vez que passam diante de uma casa rosa. Por fim chegam à escola. Na volta, tudo de novo.  Então, responda: Quantas vezes por ano essas crianças voltarão a fazer esse trajeto? O caminho é seguro para eles? O percurso, evidentemente, é estressante e cansativo para as crianças. 

 Garotinho caminha no asfalto devido à obra na calçada. Foto: arquivo do autor

 

Se lutamos por cidades mais humanas, estamos pensando também numa cidade onde possamos deixar nossos filhos caminharem com o máximo de tranquilidade, para nós e para eles. Criar cidades onde a pessoa é a figura central é pensar nas crianças; consequentemente, estamos valorizando a vida. Se para você, que é adulto, está difícil caminhar nas grandes cidades, imagine para eles. Para uma criança, na sua cabeça cheia de fantasia e que ainda (graças a Deus) não teve seus sentidos amortecidos como os de um adulto, deve ser muito desafiador, uma aventura de verdade, andar nestas cidades “mucho” loucas.


Caminhar, o médico já falou, faz bem para a saúde, disso todos sabem. Para a criança com suas perninhas curtas o mundo parece bem maior e enquanto caminham conseguem ver, escutar e sentir o mundo, conseguem divagar, coisa que muitos adultos não lembram como é. Sem dúvida nenhuma, uma das melhores coisas que a caminhada nos dá (e os pequenos sabem) é a possibilidade de contemplação.


Os “ferrapobre”
Meu filho, que é muito bom pra inventar nome para as coisas, disse certa vez, quando tinha sete anos, ouvindo uma das minhas conversas sobre cidades, pessoas e trânsito: “Pai existe as Ferrari e os Ferrapobre.” Ele explicou: “Pai, o cara que tem uma Ferrari não precisa andar rápido porque o carro dele é tão bonito e tão potente que ele passa devagar para os outros verem. Mas, tem também aqueles que passam a milhão e acham que estão abalando, mas na verdade eles só tão ferrando os pobre, entendeu? São os Ferrapobre!”. Eu fiquei besta com tamanha sabedoria e tivemos um ataque de riso.


Pense também, que estas crianças são as mesmas que serão os adultos de logo mais. E se queremos ter cidades melhores para caminhar e viver na nossa velhice, essa mudança depende também dessas agora pequenas pessoas. É preciso mostrar a eles que existem outros caminhos.


Convide seu filho para caminhar e vá observando... É esta a cidade que você quer deixar para ele? Mesmo assim, não se aborreça, aproveite para se divertir, e continue caminhando.

 

*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.

 

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