Meli Malatesta e a mobilidade ativa: "Acredito na força da sociedade"

Nesta entrevista, a especialista em mobilidade ativa fala sobre a transição da engenharia de trânsito, da fluidez ao carro para a prioridade a pedestres e ciclistas

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Regina Rocha/Mobilize Brasil  |  Postado em: 29 de setembro de 2020

Meli Malatesta: pedestres não eram considerados pe

Meli: pedestres não eram considerados nos planos de trânsito

créditos: Arquivo pessoal

A urbanista Maria Ermelina Brosch Malatesta, a Meli Malatesta, é uma das maiores autoridades brasileiras em mobilidade ativa. Depois de 35 anos atuando na Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET), ela se fez doutora em Mobilidade a Pé e segue atuando como palestrante e professora em cursos que envolvam o redesenho das cidades para as pessoas, a pé ou em bicicletas. Nesta entrevista, a doutora Meli fala um pouco sobre sua carreira e sobre a evolução que ela pode testemunhar, desde os tempos em que a bicicleta ainda era vista como um simples brinquedo. E em outubro ela inicia o curso on-line "O Desenho da Cidade para a Mobilidade a Pé", na Universidade Mackenzie, voltado a arquitetos, engenheiros e outros profissionais que atuam no planejamento urbano.


Como você começou a atuar em planejamento de trânsito e por que se dedicou à mobilidade ativa?
Sou formada em arquitetura e urbanismo. E na época em que terminei o curso de graduação (1978), estavam sendo trazidos para o Brasil os princípios do que depois se chamou 'engenharia de tráfego'. É o que ainda hoje podemos denominar como princípios ou diretrizes para o funcionamento da mobilidade urbana. Nesse período eu comecei como estagiária na Companhia de Engenharia de Tráfego de SP (CET), logo após a sua criação, e trabalhei lá por 35 anos. Durante esse tempo na CET eu tive a sorte, a felicidade, de trabalhar nessa área dedicada à mobilidade ativa - mesmo com a visão restrita, de segurança, que se tinha então.


Poderia explicar melhor o que era essa "visão restrita"?
Era assim: quando um pedestre ou um ciclista virava um fato, um atropelamento, um acidente, aí é que a engenharia de tráfego iria se preocupar em resolver o problema. Mas, apesar disso, eu tive ali a oportunidade de trabalhar com o planejamento da mobilidade ativa. Ao longo desse tempo, a exemplo do que via acontecer no cicloativismo, percebi o quanto é possível a sociedade organizada exercer pressão sobre o poder público para trazer à realidade a vontade da população. Vi que é possível fazer com que o próprio poder público, movido por princípios técnicos que nem sempre são aplicáveis, se defina entre o que é bom e o que é ruim para a cidade.


Você acompanhou o comecinho da engenharia de tráfego no Brasil. Como isso se aplicava aos pedestres?
A engenharia de tráfego teve início aqui em São Paulo, ou mesmo um pouco antes, devido ao crescimento e à necessidade de se organizar, de forma sistematica, essa circulação de veículos pela cidade. E toda a teoria de engenharia de tráfego, como o cálculo de capacidade, se baseou na hidrodinâmica, na teoria dos fluidos.


Foto: Arquivo pessoal

Com o passar do tempo, se viu que não dava para tratar o deslocamento de pessoas com base nos princípios da mecânica dos fluidos. Isso não dava certo...
Tanto que, com o redesenho da cidade pela engenharia de tráfego, acabaram surgindo pontos de atropelamento, pontos de conflito entre veículos e pedestres, já que o princípio aí colocado era o de promover somente a fluidez do trânsito, dos que se deslocavam em veículos. E, é claro que desde sempre a prioridade foi dada ao carro... devemos lembrar que mesmo o transporte coletivo nunca foi considerado objeto de prioridade, a não ser mais recentemente. Bem, ao longo do tempo e com a ocorrência dos atropelamentos, das mortes, dos ferimentos, das pessoas sendo agredidas pelo trânsito, as autoridades notaram que tantos acidentes geram deseconomias. Surgiu então o interesse em tentar resolver isso.


Mas os pedestres continuavam sendo vistos como obstáculos à fluidez do  trânsito?
Exato. No princípio, eram planos de segurança que tratavam o assunto pontualmente, temporariamente, ou por meio de um conjunto de ações específicas. Mas tudo sem enfocar o problema em si, sem levar em conta a necessidade de se rever as prioridades dos vários deslocamentos das pessoas no espaço urbano. Então, mesmo que os técnicos tentassem resolver com ferramentas da engenharia de tráfego, com finalização, nessa operação se continuava dando a prioridade ao veículo. Foi só quando viram que o problema não era resolvido, que concluíram que deveria ser mudado o modo como o problema era enfocado. Então, aos poucos, a engenharia de tráfego passou a se voltar mais para as necessidades 'das pessoas', mesmo que sejam pessoas no interior dos veículos, sejam automóveis ou até ônibus do transporte coletivo. E também passou a pensar no entorno de pontos ou terminais de ônibus, do metrô.


E em relação às bicicletas? Quando foi que recuperaram seu status de veículo de transporte?
O primeiro plano cicloviário foi feito aqui, para a cidade de São Paulo, em 1981. E foi feito por conta da crise do petróleo. À época, como ainda estávamos sob ditadura, as diretrizes de trabalho vinham do governo federal, do Ministério dos Transportes. Houve então uma instrução para que todos os órgãos de trânsito, no caso a CET, trabalhassem em cima de projetos cicloviários, e foi o que fizemos. Mas, passado um tempo, o problema do petróleo se resolveu e o plano ficou arquivado.


E as ciclovias foram esquecidas?
De vez em quando se decidia retomar o assunto, até que, por volta de 2005, a política cicloviária começou mesmo a entrar como meio de transporte. Ocorre que o uso da bicicleta se intensificava, principalmente nas regiões de periferia, onde as pessoas pedalavam para fazer a viagem final, depois que desciam no último terminal do transporte público. Por exemplo, aqueles que usavam o transporte sobre pneus e paravam no terminal de Parelheiros (bairro da zona sul), ou os que usavam o trem, no Itaim Paulista, no Jardim Helena (extremo leste da capital).

As pessoas levavam a bicicleta para terminar suas viagens, já que o transporte público, no estirão final, era muito precário. Era aquele mundo de bicicletas estacionadas em vários locais, e o poder público tinha de resolver como organizar. Então, muito timidamente, e com muita dificuldade de entendimento - já que a prioridade do carro tinha se cristalizado como um pensamento vicioso na visão técnica do espaço da mobilidade -, a bicicleta aos poucos foi sendo entendida como um transporte cotidiano, e não apenas como lazer, como muitos a viam na época. E daí percebeu-se que havia necessidade de ceder espaço do sistema viário para esse veículo que é a bicicleta, além de também se prover uma convivência entre ambos os modos, carros e bicicletas. Foi durante esse processo, quando eu coordenei o departamento de planejamento cicloviário, que senti a força da sociedade para fazer com que o poder público visse tudo isso. E assim descobri o ativismo, que agora é a primeira razão de minha atuação.


Decidi sair da CET em 2013 para me dedicar inteiramente ao ativismo pela mobilidade a pé. Depois de um tempo, principalmente ao fazer mestrado e doutorado no tema, eu senti que teria muito mais a contribuir se estivesse fora de lá, atuando de forma autônoma. E chegamos aqui em 2020, com mais ciclistas, mais ativistas da mobilidade a pé e muitos movimentos que defendem a prioridade para as pessoas nas cidades. Entendo que ainda é um processo, mas tenho certeza de que não há mais retorno...


Saiba mais sobre o curso on-line "O Desenho da Cidade para a Mobilidade a Pé"


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