Pedestre, condição natural, questão cultural: Parte 2, a Missão

Caminhante paulistano, José Osvaldo Martins escreve sobre a consciência de ser pedestre em terras brasileiras

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Osvaldo Martins*  |  Postado em: 01 de setembro de 2020

Salto perdido em Recife

Salto perdido em rua do Recife

créditos: Augusto Cataldi/LeiaJá Imagens

 

Aqui estamos nós falando novamente sobre as dificuldades enfrentadas pelos caminhantes mundo afora, contando é claro com a ajuda de nosso santo amigo Expedito, o padroeiro destes artigos.



Brasil? 


No mês passado, em nosso primeiro artigo, começamos a falar sobre quem eram os pedestres brasileiros, como pensam e se sentem. Não que seja novidade, descobrimos que são muitos milhões, que somos todos nós, que sabem que deveriam ter prioridade quando se pensa em deslocamento, e que se sentem esquecidos pela sociedade. Em suma, continuamos com nossa missão (talvez impossível) de formar uma consciência pedestre.


Comecemos com alguns dados: somos cerca de 210 milhões de brasileiros, contamos com um número médio de veículos motorizados  de 97 milhões (aí se incluindo motocicletas, caminhões, ônibus e outros) e temos milhões de pessoas com deficiência de diversas naturezas, conforme o censo de 2010. Como podemos ver, numa análise rápida, o número de pessoas corresponde aproximadamente ao dobro de veículos motorizados, ou seja, um veículo a cada duas pessoas. E cerca de 13% da população tem alguma deficiência, que por consequência diminui ou dificulta sua participação na sociedade. O número de acidentes? O número de acidentes e óbitos no trânsito continua alto, não vai nada bem, obrigado...

 

Examinando a falta de consciência
Por essas e outras a urgência de criar uma consciência pedestre. Mas daí você pergunta: O que é essa tal de “consciência pedestre”? É um conceito de que a maioria das pessoas caminhantes não sabe que é um sujeito de direitos, que este precisa saber e se conscientizar como tal, que precisa passar a se encarar de outra forma, e afinal buscar fazer toda a sociedade entender que o mais importante são as pessoas. Vamos pensar rapidamente, até por que o assunto é bem mais complexo, por quais motivos nunca houve essa tal consciência, sobretudo aqui no Brasil.


Desde a pré-história as pernas são o principal meio de locomoção do ser humano, e por milênios continuou assim, mesmo com a invenção da roda, da montaria, das carroças, carruagens, da navegação, ainda eram as pernas o meio mais convencional de transporte. E assim o foi por quase toda a história da humanidade, aí veio a revolução industrial, e este foi um ponto crucial, então os veículos passaram a ser mais rápidos, autônomos, fortes e acessíveis. Logo todo mundo queria ter um. Entenda, antes disso não havia mesmo nas cidades uma distinção clara do que era rua e do que era calçada, era tudo uma coisa só, todo o espaço era ocupado por pessoas e elas estavam em todos os lugares.


Mas com a gradual invasão dos veículos motorizados convencionou-se que daí então a rua seria para os carros e as calçadas para as pessoas a pé. De início o número de carros ainda era baixa, por isso as pessoas continuaram a caminhar pelas ruas(no asfalto mesmo)e assim foi por um bom tempo, mas no últimos cinquenta anos a frota de carros subiu meteoricamente em nosso país e caminhar o que era um ato tranquilo passou a ser  um ato de coragem e ousadia.


Em contrapartida, ironicamente outras coisas foram acontecendo por conta dos carros. Por exemplo, as antes boas calçadas começaram a ser adaptadas como rampas para que proprietários pudessem guardar seus veículos nas garagens, e daí surgiram as rampas e desnivelamentos, e a calçada foi ficando de tal forma deformada que se transforma num tipo de "frankestein arquitetônico" que não serve mais para caminhar, vira só um canteiro. O que podemos ver é que enquanto as cidades se adaptaram rapidamente para receber os carros, a pessoa que caminhava se acomodou e achou tudo muito natural, nem teve tempo de questionar se aquilo tudo era certo, se devia lutar pelo seu espaço, ou seja não se formou nunca no Brasil uma consciência pedestre. Claro que algumas pessoas devem ter notado que algo estava errado, mas elas eram minoria.

 

 

Com uma ladeira e calçada dessas, quem precisa de academia? Quando deixada
a responsabilidade do passeio a cargo de pessoas sem consciência, cada um faz o que
acha melhor para si mesmo. Por isso as calçadas foram se transformando em tudo, menos um espaço para caminhar

 

Quem é o pedestre?
Somos todos nós. O pedestre somos todos nós, eu você, a tiazinha que puxa o carrinho de feira, o motorista do caminhão, a moça com o bebê no colo, o motoboy, o cara indo trabalhar, a moça do posto de saúde, o rapaz que lê sua luz, o motorista de táxi, o vovô passeando com seu netinho, o atleta de academia, e até o magnata uma hora tem que caminhar. Em algum momento todos nós somos pedestres. 

 

Por isso...
Disseminando uma ideia:
Já que somos todos nós, essa discussão não pode se restringir a um círculo de entendidos, é preciso falar a todos, pulverizar a questão mesmo, jogar no ventilador, digamos que a missão é que este assunto se torne corriqueiro, a meta é atingir todos, desde o "Zé da esquina", passando pelo pedreiro que arruma sua calçada, o padeiro, o policial que para a viatura em cima do passeio, o dono da loja, o vendedor de pipoca, a professora, a faxineira, a médica e o entregador. Talvez você diga: “Mas será que estas pessoas se importam? Será que elas leem este artigo?” Boa pergunta e eu digo: você está lendo, você é um divulgador da consciência pedestre, você pode conversar com seus amigos e parentes, você é que leva a ideia adiante. Pra mudar o nosso redor é preciso mudar a forma como as pessoas veem o problema, até porque muitos nem enxergam o problema.


Cobrar apenas o poder público não adianta, até porque seu alcance é limitado. O que é preciso é mudar as mentes e corações. As cidades são feitas por pessoas, então a mudança precisa ocorrer nelas, mudando o pensamento tudo muda a nossa volta. Mudando a mentalidade transformamos a realidade.

 



Contrastando com a imagem anterior, uma calçada acessível, realizada por uma
construtora a serviço de um shopping center: grandes coprporações, dada sua
visibilidade, são mais fiscalizadas pelo pode público, obrigadas a seguir as normas
e leis, incluindo as de calçadas. E por fim, agregam valor à sua imagem por cuidar bem
de sua fachada. Mas, resumindo, você prefere caminhar pela imagem anterior ou por esta? 

 

Esta missão é sua, é minha, é nossa. Não é impossível. Converse com seus amigos... E continue caminhando. 

 

*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.


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