"Pressionar os candidatos em defesa da mobilidade sustentável"

O urbanista Marcel Martin, do Instituto Clima e Sociedade, defende uma transição para transportes elétricos e explica por que a mobilidade ativa é vital para as cidades

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil  |  Postado em: 18 de agosto de 2020

Marcel Martin, do iCS: reduzir as emissões de carb

Marcel Martin, do iCS: transição energética no transporte

créditos: Arquivo pessoal

Marcel Martin é arquiteto e urbanista pela USP e mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Coordenador do portfólio de Transportes do Instituto Clima e Sociedade (iCS), ele fala sobre os desafios do Brasil na área de mobilidade urbana, argumenta em favor do ônibus ("ele não é o vilão"), defende uma transição para transportes coletivos elétricos e explica por que os modos ativos são tão importantes na rede de mobilidade de qualquer cidade contemporânea, especialmente em meio à pandemia da Covid-19. A entrevista foi realizada por telefone, na primeira semana de agosto 

 

O que é o iCS e quais são suas atividades na organização?
O Instituto Clima e Sociedade é uma organização filantrópica que atua no Brasil para a promoção da prosperidade, justiça e desenvolvimento de baixo carbono. O objetivo é a construção de soluções para a crise climática, que hoje já afeta todo planeta. O iCS funciona como uma "ponte" entre financiadores internacionais e nacionais e parceiros locais que atuam para reduzir as emissões de carbono. Nossa área trabalha para reduzir as emissões de carbono, ou descarbonizar as atividades de transportes. Nas cidades, buscamos a substituição da motorização dos ônibus - porque são veículos de transporte coletivo - por sistemas de baixas emissões de carbono. E também procuramos apoiar outras formas de transporte mais sustentável, em especial a bicicleta e a caminhada. Enfim, promovemos uma mudança na mobilidade, não apenas pelo viés tecnológico, mas também por um pacote de ações, que incluem mais informação, educação e campanhas que reduzam as emissões dos transportes.

 

Quanto das emissões aqui do Brasil se devem ao transporte urbano?
O consumo de energia do setor de transportes é um dos maiores do país e já representa uma boa parcela das emissões. Nas áreas urbanas, o transporte é, sem dúvida, o maior fator de emissões, principalmente porque a indústria já não é preponderante entre as atividades econômicas das cidades. E a pandemia comprovou isso, porque o ar das cidades ficou muito menos poluído durante as primeiras semanas da quarentena, quando as pessoas realmente evitaram sair de suas casas e usar seus carros. A greve dos caminhoneiros, em 2018, já havia demonstrado isso, conforme vários estudos realizados na época. As aferições da Cetesb [empresa estatal que faz o controle de poluentes no estado de São Paulo] mostraram que os poluentes reduziram durante aquele movimento. Agora, com a retomada gradual das atividades, já é possível notar que a qualidade do ar voltou a piorar por causa da circulação de mais veículos.

"O transporte é, sem dúvida, o maior fator de emissões de carbono nas cidades. E a pandemia comprovou isso, porque o ar das cidades ficou muito mais limpo..." 

Alguns estudos mostram que um carro médio emite cerca de um quilo de carbono a cada dez quilômetros. Essa cifra tem consistência?
É daí para cima, mas é muito difícil cravar um número porque existem muitas tecnologias que podem afetar as emissões de cada tipo de veículo. As emissões dependem da eficiência do motor, da idade do carro, da manutenção, do tipo de combustível e até da forma como o condutor dirige seu veículo. Nos Estados Unidos há campanhas para reeducar as pessoas sobre a forma de dirigir para minimizar as emissões de poluentes. Isso foi muito forte nas portas de escolas, onde se formam aquelas filas de carros ligados, soltando a fumaça que vai prejudicar mais as crianças, porque elas estão mais próximas da linha de saída dos escapamentos.

 

Mas, e os ônibus diesel... eles também não contribuem para essa piora do ar? Não seria urgente substituí-los por veículos de baixas emissões?
Sim, os ônibus, assim como os caminhões e todos os veículos movidos a diesel, têm emissões de material particulado muito nocivo à saúde. Mas, uma cidade como São Paulo tem uma frota de 15 mil ônibus, enquanto o número de veículos particulares é muito maior. São quase seis milhões de automóveis e mais de um milhão de motos. E vários estudos mostram que os carros circulam com um ou dois passageiros, o que dá uma média de 1,3 passageiro por carro. Então, não podemos tratar o ônibus como um vilão das emissões... Um ônibus pode transportar pelo menos 40 pessoas, ou 20 pessoas, durante este período de pandemia. Então, embora seja também um emissor de poluentes, a emissão média, por pessoa, é bem menor. Imagine uma grande avenida brasileira, como a Avenida Brasil, no Rio de Janeiro. Se você conseguir transferir aquelas pessoas que estão em seus carros - e quase sempre sozinhas - para ônibus, não tenha dúvida de que a taxa de emissões de poluentes vai baixar radicalmente. E se nessa avenida você tiver uma boa ciclovia, uma calçada larga, uma boa sinalização para pedestres, então teremos uma rede de mobilidade sustentável. Em suma: decididamente, o ônibus não é o vilão.

 

Então, ficamos com o diesel?
Não. Nós não podemos mais continuar com o modelo de transporte baseado em veículos a combustão. Temos que avançar com as políticas de renovação das frotas porque já dispomos de tecnologias com zero emissões, mas essa mudança vai depender da pressão da sociedade sobre os governantes, especialmente os gestores locais, que são os responsáveis pelas concessões e pela regulação da atividade de transporte público.

 

A tecnologia mais à mão é a dos ônibus elétricos, especialmente a bateria, mas há uma série de ressalvas sobre os processos de produção e, posteriormente, de descarte das baterias. Não estaremos apenas trocando o tipo de poluição? Há alguma pesquisa recente que aponte o que fazer com essas baterias depois que elas perdem sua capacidade de carga? 
Sim. Em primeiro lugar, as baterias a base de chumbo estão sendo gradativamente substituídas pelas novas tecnologias, que são menos agressivas ao meio ambiente em seu processo de produção. Mas, à medida em que se forme esse novo mercado, com os novos tipos de baterias, também deve crescer a atividade de recondicionamento para que as velhas baterias possam ser reaproveitadas. Se países da Europa, como a Alemanha, por exemplo, estão sinalizando à indústria automobilística para que ela promova essa mudança para a motorização elétrica, isso indica que já há uma maturidade dessa nova tecnologia. Ninguém vai trocar um problema pelo outro... As baterias de um ônibus duram cerca de 15 anos. Depois desse uso no veículo, que precisa de uma capacidade de recarga rápida, elas podem ser usadas em instalações estacionárias, por exemplo para reservar energia gerada em paineis fotovoltaicos. Enfim, é um novo mercado em nascimento. E eu creio que, pensando em sustentabilidade, não há mais como continuar usando combustíveis fósseis.

 

No Brasil, a maior parte da eletricidade vem de fontes hidrelétricas e eólicas, mas em outros países a energia elétrica ainda é gerada pela queima de óleo, gás e até carvão...
É verdade, mas, mesmo nesses casos, a eficiência do equipamento de uma usina elétrica é muito superior ao de um motor a combustão de um carro ou ônibus. Além disso, essa geração em usinas de grande porte afasta a poluição do meio urbano, o que é um ganho importante para a saúde das pessoas e, consequentemente, para a economia dos países. O maior problema dos veículos elétricos é a autonomia, especialmente para ônibus e caminhões que viajam longas distâncias. A alternativa, nesses casos, poderia ser a tecnologia das células de hidrogênio, mas por enquanto a produção dessas unidades ainda tem alguns problemas, como a necessidade de muita energia para sua fabricação. Mas é uma alternativa que está se desenvolvendo rapidamente. Para o uso no meio urbano, onde é possível implantar uma rede de postos para recarga, as baterias associadas a supercapacitores parecem ser a solução mais adequada.

 

E a mobilidade ativa, a pé e por bicicleta? Esse tipo de alternativa de transporte pode mesmo fazer a diferença quando pensamos em grandes cidades e mesmo na redução de emissões em escala planetária?
A crise da Covid-19 levou os prefeitos de grandes cidades do mundo a estimular que as pessoas caminhem e pedalem mais. Vimos desde bolsas-auxílio para que as pessos comprem e consertem bicicletas até políticas de abertura de novas ciclofaixas. Isso ocorreu também aqui na Colômbia, no Chile, e não apenas em cidades da Europa. É claro que com uma bicicleta a pessoa tem a possibilidade de fazer a viagem inteira ou integrar a pedalada com algum transporte de massa, especialmente se for uma e-bike. Mas é a mobilidade a pé que vai fazer as conexões entre os diversos modos. O caminhar pode substituir várias pequenas viagens realizadas dentro uma zona, como a ida de uma criança para a escola ou uma compra no supermercado. Para que isso ocorra, para que uma mãe deixe o conforto do carro e leve seu filho a pé para escola, seria fundamental que as cidades tivessem redes de boas calçadas. Os governos precisam assumir essa responsabilidade, de prover infraestruturas adequadas em todas as áreas das cidades. Só assim teremos uma mobilidade de baixo carbono. Não basta eletrificar a frota de ônibus, se as pessoas não conseguirem chegar a pé, com conforto e segurança, até o ponto, até a estação do metrô.

 

"O caminhar pode substituir várias pequenas viagens realizadas dentro uma zona, como a ida de uma criança para a escola ou uma compra no supermercado. Para que isso ocorra, para que uma mãe deixe o conforto do carro e leve seu filho a pé para escola, seria fundamental que as cidades tivessem redes de boas calçadas. Os governos precisam assumir essa responsabilidade"


Então, basta melhorar as condições de mobilidade para que as pessoas deixem o carro em casa?
Já sabemos, com base na experiência de outros países, que não basta mudar a tecnologia de transporte. Há o aspecto comportamental, que é decisivo e que envolve ações de estímulo e campanhas permanentes de esclarecimento. Será que eu realmente preciso sair de casa, ou será que não posso deixar o carro e ir a pé, ou em transporte público? É um trabalho de reeducação. E a pandemia mostrou que a cidade poderia ser mais tranquila e menos poluída... Por que não adotar esse novo padrão de mobilidade que aprendemos com aquele período?


Em outros países, os governos atuaram na crise para estimular as pessoas a andar e usar bicicletas, até como forma de evitar contaminações no ambiente do transporte público. Aqui no Brasil, apesar de termos uma lei de mobilidade urbana bem avançada, salvo raras exceções, não vimos essa orientação governamental. Temos a impressão de que as pessoas voltaram às atividades e estão usando seus carros mais do que antes da pandemia. Falta governo, falta estado?
Eu penso que infelizmente nós estamos vivendo um apagão do governo. E não apenas do governo federal, mas também dos governos estaduais e municipais. Nesse período de crise, os governantes tiveram muitas oportunidades de avançar em programas e projetos de mobilidade sustentável, de implantar faixas exclusivas de ônibus, o que melhoraria seu desempenho, de implantar ciclofaixas, de alargar calçadas, ou de criar infraestruturas emergenciais, que depois pudessem ser consolidadas. Se durante a crise da pandemia, as prefeituras tivessem implantado novas ciclovias, provavelmente muito mais gente optaria pela bicicleta. Nós tivemos - e ainda temos - todas as condições de adotar essas práticas. E não há falta de recursos, o problema é a falta de vontade, de decisão política.

 

A propósito, nós agora teremos eleições...
Sim. Essas eleições municipais vão ocorrer em um momento crítico e devem ser uma das eleições mais importantes que nós já tivemos no país nos últimos anos. E se os candidatos não entenderem isso, a população, a mídia, todos nós, temos que cobrá-los. Já há várias pesquisas que mostram a tendência dos moradores das grandes cidades de deixar o carro se houver oferta de alternativas mais saudáveis, seguras e confortáveis. Não podemos aceitar que os novos prefeitos não tenham uma visão avançada para transformar o transporte urbano em uma atividade mais sustentável, construir uma cidade mais sustentável. Se não conseguirmos isso, nós teremos cidades ainda piores do que antes da pandemia. E é inaceitável que um país que tem leis avançadas, que conta com técnicos competentes, deixe escapar essa oportunidade aberta pela pandemia. Precisamos dar um passo gigantesco, e o papel das pessoas, das organizações, das empresas, de todos nós, é cobrar essa mudança.

 

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