Marcelo Bandeira de Mello atua no segmento de transportes urbanos há mais de dez anos. É diretor executivo de duas empresas de transporte coletivo que operam na Região Metropolitana do Recife (PMR), ligadas ao Grande Recife Consórcio de Transporte, e integra o conselho de inovação da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Nesta entrevista, concedida por meio do whatsapp, o empresário comenta as dificuldades enfrentadas pelo setor de transporte em ônibus e aponta a perspectiva de atuar em conjunto com governos e empresas para evitar os picos de demanda e "achatar a curva" de uso dos transportes, da mesma forma como foi feito na saúde pública em meio à crise da Covid-19.
Além do setor de saúde, o transporte urbano é um dos segmentos que mais sofreu os efeitos da pandemia. Normas internacionais sugerem ocupação de apenas 35% a 40% no interior de trens, metrôs, barcas e ônibus para evitar os contágios, o que parece quase impossível. Por isso, o senhor está propondo uma nova modelagem que busca "achatar a curva de demanda" do transporte. Poderia explicar a proposta?
Com base nas novas especificações de serviço que estão sendo propostas, a ideia é calcular qual a capacidade máxima de transporte e fazer um balanceamento, digamos, das cargas, ou da demanda, de maneira a não saturar o sistema. De maneira análoga, é como tem sido feito no sistema de saúde: considera-se que há aí uma capacidade instalada, e a restrição à circulação de pessoas se faz necessária para não saturar o sistema todo; com isso, permite-se o atendimento das pessoas contaminadas, mas dentro do limite que o sistema de saúde pode prover.
Então, entendemos que essa não é uma decisão isolada por parte das empresas de transportes, e muito menos dos órgãos de estudos. É necessário haver um engajamento de toda a sociedade, pois é um problema coletivo. E a ideia é justamente reunir toda as entidades de classe, todas as pessoas que planejam e executam o transporte, para atuarmos pontualmente nos setores que estejam impactando de modo mais contundente a lotação dos coletivos em determinado momento, e manejar esses horários - muitas vezes trinta minutos ou uma hora, antes ou depois dos horários de pico.
Com isso, poderemos deixar a distribuição da demanda mais homogênea e reduzir a pressão por aumento de frota. Aumento de frota que impactaria os custos, que certamente não estariam cobertos pelas respectivas receitas, uma vez que os cálculos tarifários e remuneratórios previam uma ocupação diferente da que está sendo exequível nos dias atuais, com a pandemia.
Antes mesmo da pandemia, o setor de transportes ja vivia uma crise e perdia passageiros, em parte pelo valor elevado das tarifas, se comparadas à renda média dos brasileiros. Sabemos também que o transporte no Brasil é pouco subsidiado, o que faz com que pese mais para o brasileiro do que, por exemplo, para um suíço. Subsídio é realmente necessário para que o direito social ao transporte seja efetivado na prática?
Sem dúvida. Atualmente no Brasil, com raras exceções, a tarifa é custeada exclusivamente pelo usuário, o que faz com que o orçamento das famílias seja onerado demais, ao passo que não permite uma melhora real na qualidade do serviço. Em Recife, notadamente, temos uma das menores tarifas do Brasil; falando em capitais, somos a segunda menor tarifa. E com uma particularidade: o sistema aqui é metropolitano.
Todos os 13 municípios que compõem a RMR possuem terminais de integração e possibilitam o deslocamento entre essas localidades pagando uma só passagem. Então, unimos aqui uma tarifa extremamente baixa, com a possibilidade de integração; e todo esse custo é arcado basicamente pelo usuário. Isso naturalmente compromete a qualidade do serviço.
E para que essa equação possa fechar, seria preciso, ou aumentar a ocupação dos veículos - o que nesse momento de pandemia é algo improvável de acontecer, e mesmo não recomendável -, ou haver uma contrapartida do poder público, para que se possa manter essa tarifa em nível aceitável, compatível com a renda da população, e permitindo também uma melhoria na qualidade do serviço.
Ônibus em operaçãono BRT do Recife: "achatar a curva de demanda" Foto Grande Recife Cons. de Transporte
Aplicativos de empresas de várias partes do mundo, do Brasil inclusive, estão começando a oferecer o chamado transporte coletivo sob demanda. Eles circulam em trajetórias estabelecidas pelo usuário, param em pontos virtuais, e seguem com bom número de passageiros, atendendo a quem deseja chegar mais rápido à rede de transportes de massa. Na sua opinião, seria essa uma boa tendência futura, principalmente se funcionando como linhas alimentadoras do transporte troncal de metrôs e BRTs?
Temos acompanhado de perto a evolução desse serviço de transporte coletivo sob demanda, e entendemos que, sim, faz sentido como transporte complementar, principalmente para linhas onde não há demanda tão expressiva que viabilize uma frequência pré-determinada de saída de frota.
Existem, no entanto, alguns desafios aí que devem ser observados: sobretudo nas regiões mais pobres, onde a conectividade à internet ainda é uma barreira, por exemplo. Quando falamos de um transporte essencial, um serviço social, essa ideia de imputar ao passageiro a obrigatoriedade de ele ter que se registrar, ou fazer uma compra antecipada, ou até mesmo ficar sujeito a ter ou não o transporte dependendo da demanda de outros, bem... isso é uma questão que precisa ser avaliada com muita atenção, sob pena de deixarmos uma parcela da população sem atendimento.
Mas, sim, acredito que, nas linhas alimentadoras, em algumas situações volto a dizer, é possível essa convivência do transporte regular, de itinerários fixos e horários pré-programados, com os serviços sob demanda, definidos pelo interesse de seus usuários e que requerem, para a realização da viagem, um mínimo de passageiros naquele momento.
*Edição: Regina Rocha
Conheça a nota técnica proposta para a gestão da demanda no transporte público
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