Guilherme Chalhoub Dourado é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP. Cursou mestrado em transporte e mobilidade urbana na Universidade Politécnica da Catalunha, em Barcelona, Espanha, onde viveu e trabalhou durante cinco anos. Ao final desse período, apaixonado, decidiu acompanhar sua companheira para viver em Cuenca, uma cidade histórica localizada a 2.500 metros de altitude, no Equador. Lá ele foi convidado para assumir o cargo de Diretor de Mobilidade Urbana, exatamente no momento em que a cidade se preparava para iniciar as operações de um novo sistema de VLTs.
Com a crise da Covid 19, veio o desafio de enfrentar a pandemia e todas as mudanças necessárias para manter a cidade em movimento, mas evitar as contaminações. Nesta entrevista, concedida pelo whatsapp, Dourado conta um pouco de sua experiência profissional e explica as ações em curso na prefeitura da cidade equatoriana, que buscam a construção de uma cidade mais humana, caminhável, ciclável e dotada de transportes públicos limpos e eficientes.
Como você, brasileiro, foi assumir a direção de mobilidade na terceira maior cidade do Equador?
Eu já havia trabalhado na Companhia de Transportes Metropolitanos de Barcelona e posteriormente assumi um posto de coordenação no projeto Carnet Barcelona, uma iniciativa da fabricante de veículos Seat para desenvolver tecnologias de automação aplicáveis a futuros automóveis. Eu coordenei uma competição para o desenvolvimento de veículos elétricos autônomos para sistemas de compartilhamento (car-sharing) para possível aplicação em cidades da Espanha e chegamos a fazer alguns protótipos para a Seat, que é uma empresa do grupo Volkswagen. Mas, minha mulher terminou o doutorado e queria voltar para sua cidade natal, Cuenca, no Equador, e nós nos mudamos para cá. Logo que chegamos, a cidade elegeu um novo prefeito (Pedro Palacios) que assumiu com uma série de ideias inovadoras na área de urbanismo. Ele falava em constituir uma cidade mais humana, mais pacífica e apontava a perspectiva de implantar o conceito de "supermanzanas", ou superquarteirões, como os que foram realizados em Barcelona nos últimos. A ideia é reunir vários quarteirões e fechá-los, criando um ambiente mais tranquilo nas ruas internas, com prioridade total a pedestres e ciclistas, de forma que o tráfego motorizado fique fora dessas "supermanzanas". Eu fiquei entusiasmado, me aproximei e ofereci minha experiência. Ele me deu a responsabilidade de planificar essa mudança na cidade e já estou aqui, neste cargo, há um ano.
Uma característica que afeta os pedestres na cidade de Cuenca é a poluição gerada pelos carros, especialmente os veículos com motor diesel, que são muito comuns no Equador. Parece que ninguém liga para aquela fumaça preta que sai dos escapamentos...
O país é um exportador de petróleo, o que faz com que os combustíveis sejam muito baratos no país. Com 20 dólares uma pessoa paga o combustível para o mês inteiro. Então, a sensação que as pessoas têm é de que o carro tem um custo muito baixo, o que acaba estimulando o uso exagerado dos carros e uma certa despreocupação com a poluição do ar. Temos uma política de revisão anual obrigatória, que envolve o controle das emissões de cada veículo. Mas, para fugir aos controles, muita gente mudou suas matrículas de veículos para outras cidades. Assim, somente quando todo o Equador adotar essa política de revisão anual é que teremos sucesso nesse controle. Desde o mês de março estamos implantando a obrigatoriedade de que os ônibus sejam equipados com motores padrão Euro V, que é menos poluente e evita aquela fumaça preta, que tanto incomoda as pessoas. Também estamos desenvolvendo uma política de eletromobilidade, para a substituição de táxis e ônibus por veículos elétricos, em sintonia com uma legislação nacional que prevê a substituição de todo o transporte coletivo do Equador por motores elétricos a partir de 2025. Espero que esse prazo não seja adiado.
Como vocês estão trabalhando a educação dos motoristas para reduzir a agressividade em relação a pedestres e ciclistas?
Cuenca é uma cidade única no Equador. Ela é patrimônio da humanidade pela Unesco desde 1999 porque tem um centro histórico e um traçado urbano muito particular. É mais organizada se comparada ao restante do país e, em geral, as pessoas têm um nível sócioeconômico mais elevado; é a cidade com menor desigualdade social no Equador. Ao mesmo tempo, como em todas as partes do mundo, especialmente na América Latina, quanto maior o nível econômico, maior o acesso a automóveis. Aqui, como em tantos lugares, o carro é um símbolo de status social e as pessoas querem tê-lo mesmo que não seja para usar no cotidiano. Em Cuenca, a maior parte das pessoas usa o transporte público como o principal meio para deslocar-se. Quase quarenta por cento das viagens são feitas de transporte público, seguida pelo carro, com aproximadamente 30%.
O uso da bicicleta há cinco anos era praticamente nulo, menos do que 1%, e agora esperamos que a próxima pesquisa já aponte uma cifra em torno de 2%. Mas veja, durante a pandemia o uso da bicicleta chegou a 8% das viagens diárias.
Um aspecto que me chamou a atenção, quando cheguei a Cuenca, foi a preferência por carros grandes. Aqui as pessoas preferem aquelas SUVs, picapes e camionetas, sempre muito espaçosas e enormes, com motores potentes. Então foi um choque para mim. Temos o desafio de mudar essa cultura e de fazer com que o pedestre seja mais respeitado.
A partir deste ano estamos desenvolvendo uma campanha na administração municipal para inverter essa pirâmide da mobilidade e colocar o pedestre em primeiro lugar. Para isso, estamos iniciando algumas iniciativas dentro do conceito de ruas completas, utilizando recursos do urbanismo tático. Fizemos uma experiência-piloto de "supermanzana" quando fechamos a parte mais central da cidade e oferecemos uma série de atividades voltadas ao pedestre. Ainda são experiências e temos consciência de que as coisas não mudarão de repente, mas que será um processo contínuo de mudança. Estamos trabalhando em um Plano de Mobilidade Sustentável 2020-2030 que deve ficar pronto até o final deste ano e que inclui todos esses itens em direção a uma cidade mais humana.
Experiência realizada em janeiro de2020 para a criação de superquadras, seguindo o exemplo de Barcelona (El Mercúrio)
O transporte público é baseado em ônibus?
Sim, o transporte público aqui é um grande desafio. Temos 475 ônibus urbanos e outros 90 ônibus que ligam a área urbana aos distritos rurais, as "parróquias". O sistema de ônibus de Cuenca nasceu a partir de iniciativas individuais. A pessoa tinha um ônibus ou uma van e passava a oferecer transporte entre um bairro e o centro, de uma maneira informal. Felizmente, não temos mais transporte informal na cidade, mas as linhas existentes são as mesmas que se consolidaram ao longo do tempo. Esse processo é comum a várias cidades, mesmo nas grandes capitais. Agora estamos trabalhando para reorganizar as linhas e evitar as redundâncias, de forma a reduzir os custos operacionais. Com isso, podemos melhorar as condições para as empresas de ônibus e ao mesmo tempo dispor de mais carros para melhorar a frequência em cada linha: por exemplo, em vez de ter um ônibus a cada oito minutos, podemos baixar o intervalo para seis ou cinco minutos, nos horários de maior demanda. O plano de mobilidade também aponta uma migração para o transporte elétrico e nos próximos meses devemos testar alguns ônibus elétricos em um sistema de integração com a nova linha do tranvía, o VLT de Cuenca.
O VLT demorou muito tempo para operar...
É uma linha de 10 km que começou a ser planejada em 2013, teve o início da construção em 2015 e que deveria ter sido concluída em 2017, mas sofreu atrasos. No final de 2019 nós recebemos a obra e iniciamos os testes para a calibragem da operação. Estávamos quase lançando a operação experimental quando fomos surpreendidos pela pandemia. Em maio nós iniciamos a operação de treinamento cidadão, ainda gratuita, para que as pessoas possam viajar e experimentar o novo modelo de transporte. E também para acostumar os motoristas com a passagem das composições, porque a linha cruza uma área central, muito densa. E queríamos "educar" as pessoas para evitar acidentes. Essa fase de transição foi um desafio muito difícil: de um lado, as pessoas ficaram muito felizes porque finalmente podiam experimentar o VLT, mas começaram a usá-lo de forma indiscriminada, sem qualquer cuidado, o que trazia grandes riscos em relação à pandemia. Daí, nós passamos a adotar um protocolo muito rigoroso para que não seja ultrapassada a lotação de 50% dos veículos. Esse controle tem sido difícil porque a linha cruza uma área de alta demanda, com grande fluxo de passageiros.
Tranvía de Cuenca opera no Centro da cidade desde meados de maio de 2020: marcações de distanciamento. Foto: Metro
Como estão conseguindo evitar contaminações pela Covid-19? Como foi possível manter o distanciamento social no transporte público em Cuenca?
O transporte público vive da aglomeração, de uma aglomeração controlada... Nós começamos a trabalhar pensando em aumentar a oferta, a frequência, para reduzir essa lotação. Quando a cidade começou a flexibilizar um pouco o distanciamento social esperávamos que as pessoas voltassem a usar o transporte público como antes da crise, mas isso não ocorreu, porque a maioria delas tem medo de contaminar-se. As pessoas estão evitando usar ônibus e o movimento chegou a cair mais de 80%. Por isso, queremos incentivar as pessoas voltar ao transporte coletivo, mostrando que se trata de um meio seguro de transporte, e para isso estamos adotando protocolos muito rigorosos de higiene. O VLT está sendo higienizado ao final de cada viagem e temos um limite de ocupação de quatro pessoas por metro quadrado. Estamos operando sem dinheiro, somente com cartões, com oferta de álcool em gel em todos os veículos, além do uso obrigatório de máscaras para todos os passageiros e operadores.
E a mobilidade ativa durante a pandemia?
Cuenca é uma cidade média, com distância relativamente curtas. Então, as pessoas estão encontrando alternativas, principalmente com o uso da bicicleta, mas também da caminhada, o que é muito positivo.
Uma forma de reduzir o uso do transporte é o estímulo ao comércio e serviços nos bairros. As pessoas são acostumadas a pegar o carro e ir até um grande centro de compras, sem se dar conta de que existem pequenos comércios a uma quadra de suas casas e que podem atender a quase todas as necessidades.
Por isso, estamos estimulando um programa que chamamos "Meu Bairro", justamente para lembrar dos pequenos comércios que existem ao nosso lado. Queremos evitar que as pessoas usem os carros e que prefiram caminhar, usar bicicletas e também o transporte público. Nas áreas mais densas da cidade, como nas proximidades dos mercados, estamos tirando faixas de veículos para permitir que as pessoas possam caminhar mais livremente, com distanciamento.
Sinalização para distanciamento social durante a pandemia de Covid-19 Foto: Prefeitura de Cuenca
As tarifas do transporte público do Equador são baixas se comparadas às do Brasil. Há subsídios para manter esses valores baixos?
As tarifas aqui são mais baixas porque, de forma geral, o custo de vida é mais baixo no Equador. Um dos fatores que faz o transporte público custar menos são as longas jornadas de trabalho dos motoristas, que trabalham dez, doze e até catorze horas por dia, o que está longe de ser adequado. E as autoridades procuram evitar aumentos nos preços dos transportes porque a reação social é muito forte, não apenas aqui, mas em todas as partes do mundo. Enfim, ninguém quer aumentar as tarifas. Subsídios ao transporte público são pouco aplicados no Equador. Apenas a capital, Quito, e a maior cidade, que é Guayaquil, contam com algum subsídio. Em Cuenca, não há subsídio, mas devemos começar a experiência agora com a operação do VLT. A tarifa 'técnica" do VLT, ou seja aquela que representa seu custo real, deveria estar em torno de US$ 0,80 (cerca de R$ 4,30), mas as pessoas pagarão US$ 0,30, que é a mesma tarifa do ônibus (a moeda corrente no Equador é o dólar dos EUA). Mas, como vivemos em meio a uma crise econômica, os municípios resistem em adotar subsídios por temer o impacto nas finanças públicas.
Antes de mais nada precisamos racionalizar e aumentar a eficiência do transporte público porque senão estaríamos subsidiando a ineficiência.
Como subsidiar?
Acho que devemos buscar mecanismos para que o dono do carro de alguma forma financie o subsídio para o transporte público, para a construção de calçadas e de ciclovias. Acabamos de aprovar uma lei municipal que estimula a mobilidade ativa e que prevê um fundo para o financiamento de obras para pedestres e ciclistas.
Quais são os próximos passos?
Especialmente neste momento de isolamento social estamos implantando as "ciclovias emergentes", que devem ficar, porque estavam planejadas pela prefeitura. Cuenca tinha 50 km de ciclovias, mas a maior parte dessas faixas estavam às margens dos rios, que são muito agradáveis, mas que serviam sobretudo para o lazer. Agora estamos criando novas ciclovias para suprir demandas de transporte, de forma a evitar o uso do transporte individual, e mesmo para desafogar o transporte público. Nestes dois meses estamos fazendo mais de 10 km de ciclovias e aqui isto é muito, porque sofremos resistências e a própria empresa municipal de mobilidade não estava preparada para atuar nesse segmento da mobilidade ativa. E até o final de 2020, devemos criar mais outros 20 km de ciclofaixas, ciclovias ou ciclorrotas.
Ciclofaixa recém-implantada durante a pandemia Foto: Prefeitura de Cuenca
E para os pedestres, o que virá?
Outra ação envolve a criação de ruas completas, ou seja ruas em que os espaços atendam igualitariamente a todos os modos de transporte: pedestre, cadeirante, ciclista, transporte público e o automóvel. Em Cuenca, cerca de 80% dos espaços da rua são destinados aos carros, mas estes transportam menos do que 30% das pessoas. Se colocarmos uma faixa de ônibus, uma ciclovia, se aumentarmos as calçadas, conseguimos equilibrar esse jogo. E neste momento de crise de saúde isto é ainda mais urgente. Estamos começando no entorno de mercados e instituições de saúde, onde circulam mais pedestres. Infelizmente, por motivos históricos, as calçadas de Cuenca são estreitas, sem acessilidade, e precisam ser alargadas e adequadas às pessoas com mobilidade reduzida. Há calçadas com 1,20 metro ou até menos do que isso, porque alguns imóveis 'invadem' a calçada. Fazendo essas alterações, pouco a pouco, esperamos atrair mais pessoas para caminhar e convencer as pessoas a deixarem seus carrões na garagem.
Veja mais imagens das intervenções em Cuenca, Equador:
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