"Os escritórios, e não os ônibus, são o grande disseminador do vírus"

Em entrevista, empresária do setor de transportes quebra o senso comum e afirma que os coletivos podem sim ser um ambiente seguro contra a covid-19

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/ Mobilize  |  Postado em: 03 de julho de 2020

Milena Romano aponta futuros para os ônibus urbano

Milena B. Romano aponta futuros para os ônibus urbanos

créditos: Arquivo pessoal

Milena Braga Romano é graduada em Direito, com diversas especializações em transportes e gestão de negócios, no Brasil e no exterior. Vice-presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo do ABC e CEO das empresas BR7-Transporte Coletivo de São Bernardo, Diastur, ABC Escolar, e da Cartão Legal (bilhetagem eletrônica), ela também é co-fundadora da startup UBus, de transporte coletivo sob demanda. Nesta entrevista, a empresária discute cenários possíveis para o transporte público, especialmente com o impacto da covid-19, e aponta caminhos para possíveis futuros dos ônibus urbanos.

 

Qual é o futuro do ônibus? Tornar-se um híbrido de VLT, ser um veículo elétrico autônomo ou ser substituído por sistemas sobre trilhos? 

Todas essas hipóteses são possíveis e podem compor o cenário futuro do transporte, mas no curto e médio prazos as opções mais viáveis são os ônibus com motorizações menos poluentes, ou não poluentes, e com tecnologias e equipamentos que garantam mais segurança, conforto e comodidade aos  usuários, como piso baixo, maior espaço para circulação, tomadas de energia USB, e wi-fi.

 

Os veículos sobre trilhos são importantes, mas nunca irão substituir o first e last mile; sempre teremos que trabalhar com linhas urbanas alimentadoras que garantam nas cidades os deslocamentos das áreas mais afastadas até as regiões centrais.

 

Em estudos e pesquisas realizados com usuários, os pontos mais relevantes apontados são: velocidade e tempo de viagem, pontualidade, lotação e segurança. A tecnologia aplicada no veículo – se ele é elétrico, autônomo – é secundária na percepção do passageiro do transporte. E quais são as prioridades apontadas pelos passageiros? Mais do que o veículo utilizado em si, as prioridades começam na pontualidade, horário efetivo de passagem das linhas, tempo de viagem, horário de chegada ao destino. Neste âmbito, há espaço para os serviços e recursos que a tecnologia dos aplicativos oferece, ganhando importante papel viabilizador para atender de forma mais eficiente aos clientes, informando e garantindo que a viagem seja mais rápida, barata, confortável e segura.

 

A propósito, a senhora está à frente do projeto UBus. Poderia explicar o que é e como poderia ser aplicado em cidades tão desiguais como as brasileiras?

O UBus é uma plataforma tecnológica, que tem como um dos objetivos oferecer opções de transporte sob demanda, que levem o cliente do ponto A ao ponto B da maneira mais eficiente, rápida, segura e com o melhor custo. Uma das funções do aplicativo é permitir que as passagens sejam compradas previamente e os assentos sejam escolhidos e reservados por meio de aplicativo. O propósito da empresa é atuar somente com operadores de transportes regulamentados, para que possam colaborar com o transporte coletivo de forma mais competitiva nas cidades.

 

Como funciona exatamente o sistema sob demanda? Ele compete com o transporte convencional?

A proposta é que o modal seja complementar às linhas regulares. A UBus abre uma oportunidade para que os empresários do setor inovem e passem a oferecer ao usuário a oportunidade de planejar a sua viagem. É necessário flexibilizar o negócio e atrair mais passageiros para o transporte coletivo. Hoje, cerca de 30% das linhas regulares são deficitárias, mas o concessionário precisa atender. Com a plataforma, é possível dispor de veículos menores e atuar de acordo com a demanda.


O transporte de linhas troncais não vai desaparecer, pois é necessário. A ideia é usar veículos mais adequados para fazer o first mile e o last mile, atuando de forma complementar ao transporte regular. Precisamos resgatar os passageiros que saíram do transporte público para o individual, por aplicativo ou não, e oferecer um modal mais confortável e seguro vai contribuir para isso.

 

Há uma tendência, detectada inicialmente na China, de se evitar o transporte público devido aos riscos da covid-19. E normas têm sido adotadas por cidades do mundo para reduzir a lotação dos trens e ônibus a 50% ou até 35% de sua capacidade, para garantir o distanciamento mínimo de segurança. Seria possível adotar esse padrão nas linhas urbanas brasileiras? 

Ao contrário, a China mesmo já apresentou estudos mostrando que o maior ambiente de contaminação está nos escritórios e não no transporte público.


Em diversos locais do mundo já se demonstrou que o transporte coletivo não é um fator propagador ou disseminador do vírus. Um estudo realizado pela empresa Marcopolo revela que renovação de ar nos ônibus é maior do que em mercados e aeroportos, por exemplo. Ele comprova que a renovação de ar dentro dos ônibus com as janelas abertas é até 63% maior do que a vazão exigida em estabelecimentos como supermercados, agências bancárias e saguão de aeroportos.


Em nossa empresa, contamos ainda com um rigoroso protocolo de segurança do transporte público: nossa frota foi ajustada para evitar a superlotação e nossos motoristas foram orientados a acompanhar o limite de embarque dos passageiros. Infelizmente, no Brasil não temos infraestrutura para aumentar o número de carros e gerar mais oferta em horários de pico, pois falta espaço nas vias para uma frota circulante três vezes maior que atual. Geraria um congestionamento e uma lentidão que acarretaria a insatisfação e tornaria o transporte coletivo por ônibus inviável para as pessoas.

 

Limpeza é um obstáculo ao uso do transporte coletivo, e muitos já evitavam os ônibus por esta razão. Agora, com a pandemia, essa questão se torna central. Seria muito exigir limpeza e desinfecção meticulosa em cada ônibus, ao final de cada viagem, incluindo os postos dos operadores? Que impactos teria no custo de operação?

Nós da BR7 Mobilidade já realizamos limpeza nos principais pontos da cidade e no ponto final dos ônibus. Também adotamos um processo extremamente rigoroso de nebulização quando o carro retorna para a garagem. Esse sistema higieniza os coletivos com os mesmos produtos destinados à esterilização de hospitais. O que gostaria de destacar é que o mais importante para se proteger do vírus é higienizar as mãos e utilizar máscara. Em nossos ônibus o uso de máscara é obrigatório. Fizemos uma campanha em maio, na qual distribuímos máscaras aos passageiros que tentavam embarcar sem o item. 


Algumas empresas providenciaram cabines fechadas para motoristas e superfícies de proteção para cobradores contra a covid-19. Além disso, e da eliminação do dinheiro no interior dos carros, que outras medidas podem ser adotadas para proteger esses trabalhadores?

No caso específico dos profissionais, as medidas tomadas têm se mostrado efetivas e seguras para proteção. Na BR7, devido aos protocolos e medidas adotados desde o início da pandemia, não tivemos afastamento de profissionais por contágio e nenhum caso grave, o que muito nos orgulha e motiva.


Antes do governo decretar a primeira quarentena, nossa empresa já afastou das atividades todos os colaboradores do grupo de risco, ou maiores de 60 anos. O mais importante para segurança e saúde de todos é que os novos hábitos se tornem cada vez mais comuns e façam parte do dia a dia da sociedade, quer seja o profissional, quer seja o usuário.

 

A poluição atmosférica é um agente facilitador do transporte do vírus. Considerando que existem fabricantes de motores e componentes, o nó para a eletrificação do transporte público continua nas baterias? Quais seriam os maiores desafios para a eletrificação do transporte por ônibus no Brasil, ao menos nas grandes cidades?

Creio que a bateria é apenas um dos pontos centrais, mas outros aspectos nevrálgicos são infraestrutura viária, tecnologia de recarga ao longo da rota e nas garagens e pontos finais, investimentos para aquisição e manutenção desses veículos e custeio do valor da passagem. Como introduzir veículos com tecnologia não poluente sem programas estruturados e de longo prazo definidos pelos órgãos gestores e poder público? Quais são as garantias e bases para que os operadores possam atuar e construir planilhas de custos e de aplicação? A discussão deste tema precisa passar pelos planos de mobilidade de cada cidade. Sem isso, os operadores ficam com suas ações e iniciativas limitadas. 

 

Em relação à poluição, os carros também poluem e, nesse sentido, se os governos não investirem em infraestrutura para corredores de ônibus, para fomentar o transporte público, mais as pessoas vão aderir ao transporte individual, causando mais trânsito e poluição. Portanto, os ônibus nesse caso fazem papel de agente da sustentabilidade, pois, como se sabe, um ônibus equivale a ter 40 carros a menos nas ruas das cidades.

 

Sobre o polêmico tema das tarifas. No Brasil, na maioria das cidades, o transporte pesa mais no bolso do brasileiro do que em cidades da Europa, Ásia e América do Norte. Uma política de subsídio poderia reduzir essas tarifas e tornar o transporte público mais atrativo?

A tarifa é outro ponto decisivo para tornar o transporte público atrativo. No  mundo, todas as cidades desenvolvidas subsidiam a tarifa do transporte público, e é graças a esse subsídio que os operadores conseguem investir em tecnologia e operação. Enquanto não tivermos um repasse federal para o coletivo, a tarifa continuará sendo elevada para o único pagante do sistema, o passageiro. Só o diesel é responsável por 20% dos custos da operação, e nos últimos quatro anos ele teve um aumento de 250%. Sem a ajuda do governo, o aumento da tarifa se torna inevitável para conseguir oferecer um serviço de qualidade.

 

Por fim, a senhora poderia apontar algumas medidas governamentais que seriam desejáveis para melhorar o transporte público no país?

Eu destacaria a revisão das gratuidades, que hoje representam 25% dos passageiros transportados sem qualquer subsídio para o atendimento. além disso, o investimento em infraestrutura prioritária para o transporte coletivo; e uma nova legislação para regulamentar o transporte individual por aplicativo.

Leia sobre o trabalho de renovação de ar em ônibus*
Leia estudo sobre a propagação do coronavírus em sistemas de ar-condicionado*
*Editado em 9jul2020


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