Ao observar o que vem acontecendo nas principais cidades do mundo nos últimos três meses, algumas conclusões já podem ser tiradas dos efeitos da pandemia global da covid-19 sobre a mobilidade. Duas delas chamam mais a atenção porque terão grandes chances de pautar as políticas de transporte no pós-pandemia.
Em primeiro lugar, as recomendações de distanciamento social e isolamento acentuaram a crise dos transportes públicos. Em segundo, muitas cidades foram forçadas a adotar medidas emergenciais fora do domínio do transporte público para que as pessoas que precisam circular pudessem ter uma alternativa para continuar se deslocando.
O efeito sobre os transportes coletivos, evidenciado pela perda de passageiros, apresenta-se de forma mais clara nas cidades brasileiras, como mostrou matéria do jornal Folha de S. Paulo do último dia 4 de abril. O segundo efeito, por sua vez, já não é tão evidente, porque ainda não há no Brasil o registro de cidades que estão seguindo esse caminho.
Ciclovia que atravessa o Viaduto do Chá, no centro de SP. Foto: Mobilize
Modelo insustentável
Apesar de avanços recentes e pontuais, nossas autoridades de transporte e trânsito ainda são resistentes a fugir do receituário que prevalece há pelo menos 50 anos: por aqui, o planejamento do transporte e da mobilidade continua muito centrado em promover a circulação baseada na fluidez do tráfego de veículos particulares motorizados e, em menor medida, dos veículos do transporte coletivo rodoviário movidos a diesel.
Esse planejamento é par de um modelo de urbanização insustentável e, como já bem lembrou Ermínia Maricato¹, os alertas já foram “ligados” sobre os impactos ambientais da impermeabilização dos solos, das áreas ocupadas pelo automóvel (estacionamentos, vias, viadutos, pontes, garagens e túneis) e da custosa predatória poluição do ar.
No contexto da pandemia, algumas cidades² têm emitido sinais de que um caminho contrário a esse é possível, com a adoção de medidas voltadas, especialmente, para a promoção do ciclismo urbano³.
Rua d’Amsterdam, em Paris. Foto publicada no Twitter, pela prefeita da cidade Anne Idalgo
Enquanto cidades do mundo inteiro já começam a discutir a permanência do que foi feito de forma temporária na emergência, o Brasil, infelizmente, parece seguir o sentido oposto. As medidas emergenciais que tratam da circulação passam longe desse enfoque em nosso país. Ou seja: as ações para a promoção da bicicleta como meio de transporte, que nunca foi incluída de forma séria e sistemática nas ações de transporte e trânsito, continuam sendo ignoradas igualmente nos tempos de pandemia apesar da luta de coletivos e organizações da sociedade civil.
O exemplo negativo vem da maior e mais importante cidade brasileira. Em São Paulo, apesar do questionamento dos membros do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT), nenhuma medida adotada até agora contempla a mobilidade ativa.
Porém, não é por isso que os atores - acadêmicos, ativistas, técnicos do setor público - comprometidos com a promoção de cidades mais justas e ambientalmente saudáveis deixarão de imaginar e disputar os futuros possíveis no pós-covid-19.
Diante disso, se existirá um “novo normal” para os padrões de deslocamento da população, é certo de que ele não poderá mais ignorar a bicicleta ou apenas tratá-la como peça de marketing urbano, sobretudo nas grandes cidades, onde os efeitos sanitários da pandemia estão sendo mais sentidos e nas quais as consequências da crise econômica são ainda mais graves.
Ciclista transporta sua bike em trem da CPTM, na RMSP. Foto: Mobilize
Quem é o ciclista urbano
Sabemos o suficiente sobre quem atualmente transita por bicicleta para realizar suas atividades, como trabalhar, ir às compras, à escola ou mesmo tarefas corriqueiras do dia a dia? Se o “novo normal” vai incluir a bicicleta, quem são as pessoas que estarão nas ruas caso as cidades brasileiras resolvam olhar para outros países e – desta vez com razão – copiar o que está sendo feito lá fora a favor desse meio de transporte?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o ciclista urbano brasileiro já existe, apesar dos esforços para invisibilizá-lo. Em segundo, existem esforços sistemáticos para coletar informações sobre ele e sobre como ele transita pela cidade e que podem orientar as políticas públicas.
Em 2013 e 2015, a partir de iniciativa inédita coordenada pela Ong Transporte Ativo, o Observatório das Metrópoles e o Labmob/UFRJ, foram realizadas duas edições de uma pesquisa para investigar quem é o ciclista brasileiro e, na segunda delas, também o latino-americano. Essa iniciativa se soma a diversos outros esforços na produção de dados sobre mobilidade ativa4. Um resumo dos resultados desta pesquisa especificamente está disponível aqui.
Nas duas edições, a pesquisa foi às ruas em cidades de diferentes tamanhos, perfis socioeconômicos e contextos geográficos. Mas todas elas com traços comuns: a presença resistente de ciclistas práticos, isto é, o ciclista que se locomove para fins de transporte, não de lazer, o uso resiliente da bicicleta e uma comunidade ciclística organizada em torno de sua defesa como meio de transporte e agente transformador das cidades.
Foi inclusive a rede dessas comunidades que permitiu que a pesquisa fosse construída coletivamente e realizada de forma voluntária em 25 cidades brasileiras e sete cidades de outros países latino-americanos. Resgatar os resultados de esforços como esse é fundamental para pensar o papel da bicicleta na mobilidade no cenário que se desenha: crise fiscal de estados e municípios, aumento do desemprego e do emprego precário e acentuação das desigualdades urbanas.
A principal conclusão da pesquisa pode ser ponto de partida para pensar as políticas públicas de transporte no pós-pandemia: as pessoas já estão propensas a pedalar e quem já pedala está disposto a pedalar mais, só não o fazem porque falta infraestrutura adequada. Esse fator está diretamente relacionado à sensação de insegurança e desproteção que, consequentemente, inibe a adoção mais prevalente desse veículo.
Clique aqui para ler o artigo na íntegra, e saber detalhes sobre esse "ciclista prático", que usa a bicicleta com frequência para ir ao trabalho, aos locais de compra, à escola, ao cinema...
*Juciano Rodrigues é professor e pesquisador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro, coordenador do projeto de pesquisa “O planejamento da mobilidade e do transporte público em Regiões Metropolitanas“.
Referências
¹ Maricato, Erminia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.
² Vale citar os exemplos de Bogotá, Lima, Paris e Milão, onde já se discute a possibilidade de tornar as medidas temporárias em intervenções permanentes.
³ A adoção dessa expressão se faz pela necessidade de diferenciar a associação que comumente se faz ao ciclismo recreativo, de aventura ou de contemplação e para designar o uso prático da bicicleta para as atividades de reprodução da vida urbana.
4 Para ficar apenas em alguns exemplos importantes, há estudo sobre acessibilidade à infraestrutura (https://itdpbrasil.org/pnb/), sobre a dimensão econômica e sobre o impacto social da bicicleta (https://cebrap.org.br/impacto-social-do-uso-da-bicicleta-no-rio-de-janeiro/).
5 Aracaju, Belém, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Manaus, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio de Janeiro.
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