O engenheiro Lúcio Gregori foi secretário de Transportes de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina, nos anos 1990, quando elaborou o projeto "Tarifa Zero" para o transporte público municipal, já colocado em prática em vária cidades do país. Durante a quarentena pela Covid 19, ele aproveitou o tempo para redigir a proposta da Taxa de Uso do Sistema Viário, como uma forma de financiar subsídios ao transporte público, como forma de reduzir o valor das tarifas, atrair mais passageiros e restringir o uso de automóveis nas vias públicas urbana. Nesta entrevista, concedida por telefone, ele explica a proposta da taxa e também discute aspectos da qualidade dos sistemas de transportes públicos existentes no país.
Lúcio Gregori, engenheiro e especialista em transportes Foto: Agência Brasil
Como nasceu a proposta da TUSV?
Acontece que há tempos eu acompanho as propostas relativas à criação do chamado pedágio urbano, tal como existe em países mais desenvolvidos do que o Brasil, para controlar os problemas gerados pelo transporte individual motorizado. Eu sempre me posicionei contrariamente ao pedágio porque essa forma de cobrança acaba transformando a rua em mercadoria, que pode ser comprada... Na verdade, o Código Civil brasileiro define que a rua é um bem de uso comum.
A ideia de pedágio se baseia em uma lógica de que as ruas têm uma demanda maior do que a oferta, uma mercadoria escassa. Assim, a rua, que é um bem público, passa a ser uma mercadoria, com cotação variável, reproduzindo-se a lógica do mercado, de permitir apenas que as pessoas mais ricas circulem pelas ruas mais valorizadas.
Esse problema me persegue há algum tempo. Agora, com o recolhimento imposto pela pandemia do coronavírus tive a ideia da TUSV e resolvi detalhá-la, como uma taxa progressiva, paga conforme o espaço ocupado e a potência de cada motor. Então, com isso consigo criar uma taxa que é progressiva, no sentido de que quem têm mais recursos - e carros mais caros - paga mais.
Como seria calculada a taxa?
Para o cálculo inicial, fiz uma consulta simples na internet e elaborei uma tabela progressiva em função da potência e do tamanho de cada veículo. A taxa é o resultado da área ocupada pelo veículo multiplicada pela potência. Isso evita que, por exemplo, um Porsche, que é um carro pequeno, mas tem motor de 300 cv, acabe pagando menos do que um carro de motor 1.0. A taxa vai variar em torno de R$ 2 a R$ 3,50 por dia multiplicado por 365. Imaginei que esse valor possa ser pago em dez prestações, já que o uso das vias, do espaço urbano, não é instantâneo, mas acontece ao longo do ano. E os recursos gerado pela TUSV serão aplicados para financiar o pagamento do sistema de transporte coletivo urbano com a finalidade reduzir o valor das tarifas.
Então quem usar menos o carro pagará um valor mais baixo?
Não. A pessoa que tem o veículo pagará a taxa independentemente do número de vezes que a pessoa circula. É uma taxa, não um pedágio. A ideia é desestimular que as pessoas comprem automóveis. Veja, os carros são caríssimos no Brasil quando comparados com os preços em outros países, mas se você considerar o valor da tarifa do transporte público e a qualidade do serviço oferecido, e se você compará-la com o custo de manutenção de um carro, o transporte coletivo perde muito a competitividade.
Mas quem tem carro já paga o IPVA. Não seria mais um imposto?
Eu penso que devemos parar com essa história de que o brasileiro paga muito imposto. Na verdade, aqui no Brasil as pessoas ricas pagam muito menos imposto do que nos países chamados desenvolvidos. O que acontece é que proporcionalmente o pobre paga muito e o rico paga pouco. O IPVA é um imposto sobre a propriedade do bem e não tem uma destinação exclusiva para a manutenção das vias, da sinalização, como muita gente pensa. É como o imposto sobre a propriedade de um imóvel.
Mas, quem tem um automóvel está automaticamente demandando os serviços públicos, porque usa o sistema viário da cidade de uma maneira muito mais intensa do que os pedestres, ciclistas, motociclistas, ou usuários do transporte coletivo. Então, a TUSV é uma forma de fazer com que as pessoas que têm carros paguem pelo espaço que ocupam “desigualmente nas ruas e pela poluição que seus veículos jogam no ar” em relação a outros usuários.
O senhor já calculou qual seria a receita dessa taxa? E como seria feito o controle para que esse dinheiro seja mesmo investido em subsídios ao transporte público?
Não tenho um cálculo nacional. Mas, considerando o município de São Paulo, com base na frota de 2019, seriam aproximadamente 6,3 bilhões de reais. Quanto à aplicação dos recursos, há que se criar um fundo específico. Depois da Constituição de 1988, para se estabelecer qualquer taxa no Brasil , é necessário que a proposta seja regulamentada pelo Congresso Nacional. Esta nossa proposta pressupõe uma legislação federal que vai autorizar os municípios a criarem a taxa de utilização do sistema viário. E vai também estabelecer as regras que deverão ser minimamente observadas para a criação da TUSV. Uma delas é que a taxa obedeça a esses critérios de progressividade. A segunda condição é que todos os recursos obtidos sejam destinados a um fundo específico, o Fundo de Financiamento da Tarifa do Transporte Público Urbano. Assim, o município que não criar o fundo não poderá criar a taxa. Mas não é um recurso para financiar o business do transporte, não é para facilitar a compra de ônibus...é financiamento da tarifa. Então, caberá ao Congresso Nacional estabelecer essas condições.
De alguma forma essa taxa também beneficiará os empresários do setor, que justamente hoje estão pedindo socorro financeiro aos governos...
Depende. Ninguém é obrigado a ter um serviço de transporte público com a contratação de empresas. E depende também da forma como se contrata o empresário. Em 99% das cidades brasileiras - São Paulo é uma das poucas exceções - , os serviços de transporte coletivo são contratados na forma de concessões. Esses contratos de concessão clássicos incluem um item que define o valor da tarifa de tal forma que garanta o equilíbrio financeiro do contrato. Porque o prefeito não pode fixar uma tarifa que não seja suficiente para manter a continuidade dos serviços. Ou seja, no fundo o sistema é pago por passageiro transportado. Cada passageiro paga uma tarifa e esse valor é que vai dar o valor do contrato.
O problema é no sistema de concessão clássico do Brasil o passageiro é considerado um custo , o que é um absurdo. Ora, o passageiro deveria ser considerado receita e não custo. Parece brincadeira, mas ‘faz um século’ que é assim. Passageiro paga sua passagem, portanto é receita...
E a prova disso é que, agora, por conta da crise gerada pelo coronavírus, os passageiros sumiram...e o que aconteceu? A receita dos sistemas de ônibus caiu. No transporte público, a prefeitura pode ter contrato de prestação de serviço,como tem em vários outros, como o fornecimento de energia elétrica, de telefonia, limpeza pública etc. A mesma lógica deveria valer para o transporte. A prefeitura não precisa ser proprietária de ônibus, o que no caso de São Paulo significaria comprar 15 mil ônibus. Ela poderia contratar um ônibus fretado, com o motorista, cobrador, e pagar pelo custo do serviço e não por passageiro transportado, como é hoje.
Falando de São Paulo, o senhor já comandou o serviço de transporte da capital e conhece bem as dificuldades dessa operação. Agora, neste momento, com a pandemia da Covid 19, quem pode está evitando o transporte coletivo. E notícias que chegam da China mostram que após a crise de saúde há uma preferência pelo transporte individual, pelo carro. O que é preciso fazer - além de reduzir a tarifa - para que as pessoas queiram usar o transporte público? Limpeza, higienização permanente, novos materias de revestimento nos trens e ônibus?
A TUSV poderia ajudar nessa perspectiva, mas de uma forma indireta. Em primeiro lugar, é preciso que os transportes coletivos sejam entendidos como um serviço limpo. O Metrô de São Paulo mostrou isso nos primeiros anos de sua operação: quando havia qualquer problema, sujeira, um risco no vidro, alguma coisa quebrada nos trens e nas estações, a empresa imediatamente fazia a limpeza, a manutenção. E se constatava que as pessoas tratam um serviço da mesma forma como elas são tratadas. Se o passageiro chega e encontra um vagão limpo, ela procurará manter essa limpeza. Se, ao contrário, entra em uma estação com aparência suja, ela não terá o mesmo cuidado. O transporte público, justamente por ser usado coletivamente, tem que ser limpo e mantido muito limpo, o tempo todo.
Mas, e na crise?
Na situação da pandemia, que é uma situação excepcional, as pessoas vão procurar o isolamento e muitas delas evitarão os trens, ônibus, barcas...mas quando a situação voltar ao ‘normal’, se a limpeza for exemplar, se a tarifa for mais competitiva - no limite, tarifa zero -, penso que o coletivo será mais atrativo do que o individual. Eu citei o Metrô dos anos 1970 e 1980, mas hoje o sistema metroviário tem outros problemas... por exemplo, as conexões entre as linhas, com os túneis abarrotados de passageiros, acessos bloqueados, escadas rolantes que não funcionam, ambulantes vendendo produtos nas estações e trens.
Transporte público limpo e bem cuidado parece ser uma utopia...O senhor acredita que esta crise de saúde possa nos trazer mudanças positivas?
No fundo, a mensagem contida nesse tratamento dado ao transporte no Brasil é de que as pessoas que têm posses, têm sucesso, usam carros e não o transporte público. Quem não tem é tratado como porcaria. E isso vale para todos os serviços públicos, que são usados principalmente pelas pessoas mais pobres. A mensagem é a de que ‘pobre não deve ficar andando por aí’. Na verdade, isso pressupõe uma mudança na vida social do país, vai muito além dos problemas do transporte. Infelizmente, eu acho que, passada a epidemia, as coisas vão seguir mais ou menos como sempre foram.
Para concluir, já que chegamos a um impasse político, vamos voltar ao tema inicial da entrevista. O senhor já encaminhou a proposta da TUSV para análise de alguém no Legislativo?
A proposta da taxa tem poucos dias de vida. Eu publiquei um artigo no site da Associação Nacional dos Transportes Públicos, enviei também o texto para o Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT) e encaminhei uma cópia para o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), que está assessorando alguns parlamentares que no momento trabalham na regulamentação do Transporte como Direito Social, conforme foi incluído na Constituição Federal em 2015. Eu levantei a bola...agora vamos ver como o jogo vai acontecer. Estou plantando ideias.
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