A pandemia e o caminhar

Andar hoje pelas ruas se tornou um ato perigoso, quase subversivo, escreve o caminhante José Martins

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Martins*  |  Postado em: 23 de abril de 2020

Mulher caminha na avenida Paulista, em São Paulo

Antes da Covid-19, mulher caminha na avenida Paulista, em SP

créditos: Roberto Kodama Ota (echosarquitetos.com)


Estamos vivendo um momento delicado devido à doença que nos espreita em cada esquina e ameaça espalhar-se por toda a sociedade. Deslocamentos foram afetados gravemente e por conta do necessário isolamento, nossa socialização ficou capenga, de um dia para o outro.


De repente, não podemos mais circular por aí, cumprimentar as pessoas, parar para bater papo ou abraçar alguém. Ficamos ilhados: caíram as pontes, ficaram os muros.


Neste cenário, nunca visto pela maioria de nós, a mobilidade se revelou uma questão de primeira importância. Poder sair e chegar a determinado lugar, um ato antes banal, agora é planejado com antecedência. Ir ou não ir, eis a questão.

 

Mas não é só isso. O novo momento também afetou o modo como nos deslocamos. Olhe para as ruas, pode ser aí da janela, e veja: as ruas estão desertas não é? Desertas de pessoas, mas o que você ainda vê? Carros, centenas, milhares deles.


Não estou aqui julgando o mérito de sair ou ficar em casa. É claro que durante a pandemia devemos circular somente o necessário. Estou falando em como isso afetou nosso ato de se mover para lá ou para cá.  E existem pessoas, aliás a maioria delas, que só contam com seus pés para levá-los onde precisam.

 

Andar hoje pelas ruas se tornou um ato perigoso, imprudente, mal visto e quase subversivo. As pessoas nos carros olham com um misto de desdém e reprovação se o cidadão caminha para comprar fraldas ou alimentos no supermercado. Mas, como sabemos, nem todo mundo tem um automóvel.

 

Todos nós estamos sentindo falta de caminhar livremente. Mesmo aquele cara que até para comprar pão vai de carro, sem precisar sequer pisar na calçada (benditos portões automáticos), ou aquele outro que no máximo caminha para levar o cachorrinho pra passear em volta do quarteirão, até aquele que simplesmente gosta de fazer longas caminhadas, todos estamos sentindo falta de andar sem maiores preocupações .

 

É esse o ponto. Uma coisa tão simples como dar uma esticadinha até a esquina, se tornou um ato reprovável. E daí, nos damos conta de que certos atos simples, que geralmente não valorizávamos, nos dão imenso prazer.

 

 

Rua da Constituição, Centro de São Paulo, antes e depois da pandemia do Covid-19 Fotos: Arquivo do autor



No livro "Ferozes Inválidos de Volta dos Trópicos", de Tom Robbins, o protagonista é um agente secreto inconsequente e não muito convencional, que acaba por topar com um xamã na Amazônia peruana e recebe uma maldição: nunca mais poderá tocar os pés no chão ou morrerá se o fizer. Ele acha graça no começo, mas quando percebe que o feiticeiro estava falando sério fica apavorado e passa a andar numa cadeira de rodas. E percebe então como lhe faz falta algo com que nunca se preocupou, sua liberdade de poder andar. Daí, a história toda se desenrola com sua tentativa de livrar-se do tabu e voltar a caminhar sobre os próprios pés.

 

A história cai como uma luva aqui neste texto e ilustra bem o que está nos acontecendo nos dias de hoje, estamos percebendo o quanto são importante coisas básicas e que costumam nos parecer banais como caminhar por aí, visitar um parente ou amigo, jogar um futebol, ir a uma lanchonete, ou sair com os colegas depois do trabalho. Ora, a história narrada acima não é nem de longe novidade, a mitologia humana está repleta de mensagens advertindo o homem quanto a sua ambição, soberba e imprudência, sempre com uma lição de humildade e incitando a reflexão. Não é à toa, aquela frase batida que diz “só damos valor as coisas quando as perdemos”.

 

Talvez você esteja aí em sua casa, e agora que está enclausurado pode estar pensando em como alegrias simples fazem a diferença na nossa vida. Falando sem falso sentimentalismo, talvez se lembre que muitas pessoas estão há muito tempo, já antes dessa crise, isoladas em asilos, ou enfermas em algum lugar sem poder sair de onde estão, e que um simples ato de poder sair de onde estão e ir de um lugar a outro para elas é de uma felicidade sem tamanho.

 

Não estou oferecendo uma solução, nem uma resposta. Pense em como você é um privilegiado por poder caminhar. Quando tudo isso passar, sorria, saia para a rua e convide alguém para sair a pé. Pois o homem que deseja o céu, não valoriza a terra onde pisa.

 



*José Martins
é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico, trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, e motorista habilitado. Mas, no fundo é só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo

 


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