Apesar do negacionismo inconsequente de certos setores da sociedade, é fato indiscutível que o Brasil e o mundo enfrentam, talvez, a maior crise de saúde pública da história recente. Não à toa, o Ministério da Saúde declarou em fevereiro estado de "Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional", em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (covid-19).
Diante disso, os estados brasileiros também decretaram regime de quarentena no contexto da pandemia anunciada, determinando urgente isolamento social, a partir, por exemplo, do fechamento de escolas, shopping centers, cinemas, bem como da proibição ao atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais, ao consumo local em bares e restaurantes.
Mas, embora o isolamento social seja a maneira eficaz de controle da disseminação do novo vírus, por diversos motivos nem todas as pessoas têm podido cumprir essa determinação, a exemplo dos profissionais entregadores de alimentos e mercadorias vinculados a diversos aplicativos do gênero.
No caso do Estado de São Paulo, por exemplo, a quarentena (Decreto 64.881, de 22/3/2020, artigo 2º, I) estabeleceu a suspensão do "consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega".
Isto é, os serviços de delivery têm sido considerados como essenciais e, portanto, excepcionados da política de isolamento social. O trabalho prestado pelos entregadores de aplicativos, que já estavam incorporados na dinâmica das grandes cidades, contribui durante a quarentena para que a população permaneça em casa e, ainda, possibilita, mesmo que de maneira parcial, a manutenção das atividades econômicas de inúmeros estabelecimentos que precisaram funcionar com portas fechadas.
Contudo, a atual crise escancarou a precarização do trabalho dos profissionais vinculados às empresas de aplicativos de entregas, que, tidos como trabalhadores autônomos, têm arcado ou com o ônus de aderirem à quarentena e ficarem sem qualquer remuneração ou com o peso de exporem sua própria saúde a alto risco, já que não contam com qualquer medida de proteção financiada pelas empresas a que são informalmente vinculados.
Ação contra as empresas
Atento a essa realidade, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou, no último dia 4 de abril, duas Ações Civis Públicas por meio das quais requereu, em caráter de urgência, a condenação das empresas Rappi e iFood à implementação de políticas de segurança aos entregadores e ao pagamento de auxílio financeiro aos profissionais que precisarem abandonar as suas atividades, seja por fazerem parte de grupo de risco, ou por estarem suspeitos ou efetivamente contaminados pela covid-19.
Na ação, o MPT reuniu depoimentos de entregadores que denunciam que as empresas não vêm fornecendo informações acerca dos cuidados pessoais que eles devam adotar, bem como que não disponibilizam álcool gel e máscaras gratuitamente, nem tampouco dispõem de locais para higienização das mãos e dos seus instrumentos de trabalho.
Estas pessoas têm trabalhado de forma totalmente desprotegida. O MPT também mencionou informações e materiais veiculados na mídia, tal como "prints" de mensagens encaminhados por entregadores que demonstram que, enquanto governos tomavam medidas de isolamento social, a iFood, por exemplo, disparava mensagens incentivando entregadores a saírem mais, anunciando o aumento da demanda em razão da quarenta como uma grande oportunidade. Isto é, segundo consta na ação, os aplicativos têm lucrado com o coronavírus expondo os trabalhadores a risco de contaminação.
As Ações Civis Públicas, distribuídas perante as 56ª e 82ª Varas do Trabalho de São Paulo, foram apreciadas pelo juiz do Trabalho plantonista do Fórum, que deferiu medida de urgência requerida pelo MPT.
A decisão condenou as empresas a difundirem informações qualificadas aos trabalhadores quanto às formas de prevenção ao contágio do coronavírus durante as suas atividades de entrega; a fornecerem equipamentos de proteção, tais como luvas, máscaras e álcool gel; providenciarem espaços para a higienização de veículos, mochilas que transportam as mercadorias, capacetes e jaquetas; e garantirem assistência financeira aos trabalhadores que integram grupo de alto risco, que demandem necessário distanciamento social ou afastados por suspeita ou efetiva contaminação pelo novo coronavírus.
Segundo a decisão, a assistência financeira em referência deve ter por parâmetro a média dos valores diários pagos nos 15 dias imediatamente anteriores à data da publicação da sentença, garantido, no mínimo, o pagamento de valor equivalente ao salário mínimo mensal.
Ou seja, as empresas deveriam pagar assistência financeira que mantenha a média remuneratória recebida pelo entregador ou, então, no valor do salário mínimo, conforme o que for mais vantajoso ao trabalhador.
Liminar é suspensa
Contudo, a Ifood impetrou mandado de segurança em face da decisão e requereu a suspensão das obrigações de fazer acima listadas, apontando como um dos argumentos o fato de que não mantém vínculo de emprego com os entregadores, de modo que a Justiça do Trabalho sequer seria competente para analisar o pleito formulado. Ademais, a empresa alegou que já constituiu fundo de um milhão de reais para ajudar entregadores que estiverem contaminados pelo coronavírus.
O pedido de suspensão da decisão liminar de primeira instância foi concedido pela desembargadora do TRT-2, Dóris Ribeiro Torres. Para a relatora, "não estamos diante do empregador definido pelo artigo 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A empresa impetrante não deu causa e tampouco exerce qualquer atividade correlata ao fato gerador da pandemia, mostrando-se inadequado impor-lhe a realização de medidas de extrema complexidade, em prazo tão exíguo e sem lhe conferir o direito ao contraditório".
Com isso, a decisão liminar que obrigava a iFood ao pagamento de assistência financeira caiu por terra, mas, salvo melhor juízo, ainda é vigente em relação à Rappi, visto que não se tem notícias a respeito de qualquer medida judicial tomada por esta última para afastar a decisão.
Em relação ao caso do mandado de segurança impetrado pela iFood, a ausência de reconhecimento de vínculo empregatício foi um dos principais motivos para a suspensão da decisão que obrigava a empresa a adotar às medidas de proteção.
Ora, a Constituição da República estabelece, em seu artigo 7º, XXII, que os trabalhadores têm direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Ocorre que, no caso destes entregadores, o arcabouço normativo de proteção à saúde é letra-morta em razão da falácia de que a relação havida entre os motoristas e entregadores com as empresas que gerenciam as plataformas digitais é de mera parceria, de modo que o trabalhador seria o único responsável por sua própria segurança.
Vínculo empregatício
É importante registrar que as empresas de aplicativos, ao contrário do entendimento da decisão do TRT-2, gozam de inúmeros mecanismos de controle dos serviços prestados pelos entregadores e, por isso, se enquadram na figura de empregador, à luz dos artigos 2º e 3º da CLT.
As empresas oferecem incentivos financeiros para aumentar a produtividade e as horas de trabalho dos profissionais vinculados, com a finalidade de maximizar seus próprios lucros. O site The Intercept, em matéria publicada no último dia 23 de março, apresentou denúncia de entregadores que afirmam que "em um dia de temporal com alagamentos no Rio de Janeiro, por exemplo, a Rappi chegou a pagar R$ 15 extras a seus entregadores."
Foi diante de circunstâncias como essas que, em recente decisão judicial, a 1ª Vara do Trabalho de Mogi da Cruzes-SP reconheceu o vínculo de emprego entre um entregador e a iFood. Na hipótese, o magistrado trabalhista ressaltou a existência de subordinação jurídica entre o trabalhador e a empresa de aplicativo.
A sentença, a partir da análise de prova testemunhal e documental, registrou que a Ifood monitora todas as entregas, determina unilateralmente um tempo fixo para que elas ocorram, têm a possibilidade de bloquear o entregador na hipótese de não cumprimento do prazo de entrega, bem como dispõe de todos os dados das corridas, tempos de pausa do trabalhador, o percentual de entregas aceitas e rejeitadas, os valores recebidos e o tempo efetivamente on-line do entregador.
Isso significa que tais empresas se comportam como empregadoras ao controlar a prestação dos serviços dos entregadores, diante da nítida subordinação jurídica destes profissionais, mas afastam-se dessa figura quando se debatem as obrigações daí decorrentes.
A ausência de proteção jurídica e empregatícia encoraja as empresas a abusarem de seu poder econômico e a explorarem essa mão de obra sem qualquer medida de segurança, mesmo em situações de extremo risco à vida dos trabalhadores, como é o caso do trabalho durante o surto do coronavírus.
O agravante é que a precarização vai além da pandemia e se manifesta no cotidiano desse serviço que, a cada dia mais, tem sido considerado essencial à população. É papel do Poder Judiciário, portanto, proteger estes trabalhadores.
*Hugo Fonseca é advogado especialista em Direito do Trabalho e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados
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