“A filha que Robert Moses e Jane Jacobs nunca tiveram”. É assim que Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York, descreve sua secretária de Transportes Janette Sadik-Khan. A urbanista é uma das grandes referências na área que defendem as ruas da cidade — maior ativo de governos municipais — como principal forma de ajudar a melhorar a vida das pessoas.
À frente das políticas de mobilidade da maior cidade dos Estados Unidos entre 2007 e 2013, Sadik-Khan liderou uma verdadeira revolução na luta contra o automóvel. Entre suas principais façanhas estão a criação de mais de 600 km de ciclofaixas e do sistema de bicicletas compartilhadas da cidade, faixas de ônibus exclusivas e dezenas de praças onde antes havia apenas espaço para carros. Por trás disso, metas audazes, um corpo técnico escolhido a dedo e muitos números para basear suas decisões. Hoje, quem caminha por Nova York aproveita a transformação de quase um milhão de metros quadrados de asfalto em áreas exclusivas para ciclistas e pedestres.
Autora de um best-seller sobre o assunto, A Luta pela Rua (em tradução livre do original “Streetfight”), Sadik-Khan nos concedeu esta entrevista exclusiva no CityLab Summit de 2019, um dos principais eventos sobre cidades e gestão municipal. Enérgica e empolgada com um futuro com menos carros e mais gente na rua, ela falou sobre participação social, pedágio urbano, transporte público, suas visitas às cidades brasileiras e muito mais.
Confira a entrevista:
Você é muito famosa pelo seu tempo na Prefeitura de Nova York, fez muita coisa relacionada à transporte, a trazer pessoas para as ruas etc. A primeira coisa que eu gostaria de saber é como você conseguiu trazer organizações comunitárias e pessoas a contribuírem para as ideias da sua equipe?
A primeira coisa que fizemos foi um plano. Sempre que você for mudar a direção de um grande navio como uma cidade é preciso ter um plano de como quer chegar lá. Então começamos trabalhando o PlaNYC, que foi a visão que o prefeito Bloomberg tinha de sustentabilidade a longo prazo.
Iniciamos com o PlaNYC e o condensamos para um plano estratégico para o New York City Department of Transportation. O PlaNYC já havia sido apresentado e discutido com os 8,5 milhões de nova-iorquinos, quando construímos nosso plano estratégico, fizemos um trabalho de divulgação comunitária, incluindo todos os cinco mil funcionários do New York City Department of Transportation. Assim tínhamos o comprometimento de baixo para cima e a visão de cima para baixo. Era uma abordagem muito integrada de como mudaríamos o status quo e tornaríamos mais fácil caminhar, andar de bicicleta, usar transporte coletivo e realmente transformar os 9,6 mil quilômetros de ruas — nosso ativo imobiliário mais valioso — e requalificá-lo, reimaginá-lo de forma que realmente servisse melhor às pessoas.
Uma das coisas que o PlaNYC citava naquela época era a taxa de congestionamento. Até hoje não a temos em Nova York e muitas cidades nem falam sobre isso. Este é o caso da maioria das cidades brasileiras. Por que você acha tão difícil questionar a “ditadura do carro”?
É mesmo difícil, porque as pessoas têm suas expectativas culturais para as ruas. “Nossas ruas são para mover os carros do ponto A até o ponto B da forma mais rápida possível”: é assim que as pessoas olham para elas e esquecem que as ruas podem ser usadas para várias outras coisas.
Durante seu mandato, a cidade de Nova York adicionou quase 400 milhas de ciclovias. Imagem: Janette Sadik-Khan
No passado não era assim, certo?
Não era, e hoje elas também esperam que as ruas devam ser gratuitas. Nós cobramos por todas as outras formas de transporte, mas de alguma maneira nossas ruas precisam ser gratuitas. Bem, isso não tem muita lógica. Então realmente precisamos estabelecer as expectativas daquilo que nossas ruas podem ser.
Em 2007 o Mike Bloomberg propôs um plano para a taxa de congestionamento e levou doze anos para conseguir que ela passasse, e isso mostra quanto tempo pode levar para se mudar a cultura, para que as pessoas passem a pensar que é possível.
Park Avenue, ocupada por pedestres e ciclistas. Imagem: Janette Sadik-Khan
E o que você acha que as pessoas podem fazer para acelerar este processo?
Parte disso é quando você mesmo chama de “taxa de congestionamento”. As pessoas odeiam o congestionamento e odeiam taxas. Assim só de citar taxa de congestionamento as pessoas já reagem negativamente: “Pare, não quero isso!”. Por outro lado, quando você fala “Mova Nova York”, “Mova São Paulo” ou “Mova Salvador”, seja o que for, as pessoas começam são mais receptivas: “Mover? Sobre o que é isso?”. Tornar mais fácil das pessoas irem de um lugar para o outro porque você está precificando suas ruas de forma eficiente, é desta forma que deveríamos estar falando, precisamos de um novo vocabulário para a mudança, acho isso muito importante.
A outra parte é que o futuro das cidades é o transporte público. Toda grande cidade do mundo que tem sucesso está investindo em transporte público. As receitas da taxa de congestionamento — ou as receitas do Mova Nova York — vão ser investidas no nosso sistema de transporte coletivo para mover os nova-iorquinos de forma mais sustentável, efetiva, através de um transporte público coletivo muito melhor.
Outra coisa é a política de estacionamento. É uma questão muito importante que a maioria das pessoas nem se dá conta. Estacionar nas ruas é, na maioria dos casos, grátis, e quando não é grátis normalmente é subsidiado, ou cobrado abaixo do preço de mercado. Novamente, seria o mesmo problema?
É outro aspecto do mesmo problema, você está absolutamente certo. As pessoas olham para as ruas e pensam que deveria ser para depósito de carros. Quem disse que este ativo público poderia ser usado por pessoas individualmente, se apropriando daquele ativo imobiliário como seu? É um ativo imobiliário público. Então olhar para formas melhores de precificá-lo, geri-lo e usá-lo de forma mais eficaz é o que cidades do mundo inteiro estão começando a fazer. Os meios fios são o ouro das cidades.
Você acha que os prefeitos percebem o potencial que temos nas ruas e nestes espaços? Nestes ativos imobiliários?
Acho que sim. Transporte foi uma área esquecida por muito tempo e agora está na fronteira da revolução da mobilidade. De repente você tem bicicletas dockless, bikesharing, patinetes, Uber, Lyft. Há todas essas coisas, o triplo de caminhões de entrega, há uma grande revolução acontecendo. Então não é mais aquele sistema de transporte do seu avô, precisamos olhar para como geri-lo de forma diferente porque as demandas são enormes. Isso está forçando prefeitos no mundo inteiro a pensarem “O que precisamos fazer com esse ativo para podermos acomodar melhor todos os usos, todas as necessidades que as pessoas têm todos os dias.”
Fiquei contente que você mencionou todas essas novas tecnologias, de compartilhamento, o carsharing, patinetes, bicicletas etc. que não tínhamos cinco, dez anos atrás. Não sabemos o que acontecerá nos próximos dez anos e quando planejamos transporte em uma cidade miramos os próximos vinte, trinta anos, certo? Então é ainda mais desafiador para cidades terem essa incompatibilidade quando falamos sobre timing. Como você vê essas tecnologias urbanas e o que o governo deveria fazer sobre elas?
Acho que o molho secreto das cidades é como um “De volta para o futuro”: caminhar, andar de bicicleta, transporte coletivo, é isso que faz as grandes cidades. Cidades que são caminháveis são aquelas que reconhecemos como as grandes cidades. Cidades cheias de congestionamento não. Acho que quando falamos dos próximos cinco, dez, quinze anos, é sobre celebrar essa vida na rua. Todos acham que veículos autônomos serão a próxima onda, mas um carro é um carro. Seja seu carro pessoal, Uber ou Lyft ou um veículo autônomo, ainda é um carro. E o propósito da mobilidade não é dar espaço para carros, mas fazer cidades melhores. É este o objetivo e acho que estamos vendo prefeitos competindo para ver quem consegue construir mais ciclovias, quem consegue construir mais faixas de ônibus, quem consegue fazer mais ruas sem carros. É um excelente embate, ver prefeitos ao redor do mundo entendendo não são apenas coisas legais, granolas ambientalistas a serem feitas; são investimentos básicos em desenvolvimento econômico.
Será o século 21 mais similar ao século 19 do que o século 20?
Acho que quando você olha o que faz as grandes cidades identificamos a caminhabilidade das suas ruas, as pequenas mudanças que estimulam a interação entre as pessoas, o convite para as ruas, o sentimento de pertencimento à cidade. É isto que as faz grandes. Acho que devemos olhar no espelho retrovisor sobre o que engrandece as cidades antes de olharmos para a frente. Isso não significa que não teremos inovações nas nossas ruas, mas é este propósito, do design orientado para as pessoas, o futuro.
Última pergunta: você esteve muitas vezes no Brasil e eu gostaria de saber a sua opinião sobre as cidades brasileiras que conhece, e que conselho você daria para nossos secretários de transporte ou para nossos prefeitos.
Acho que o futuro que tenho notado das cidades é a orientação ao pedestre, é colocar as pessoas em primeiro lugar. Colocar as pessoas no topo da hierarquia do planejamento e não carros, literalmente virando o script de cabeça para baixo. Estive muitos anos atrás em Salvador, na Bahia, e era completamente orientado para as pessoas. Grandes praças, todos estavam felizes, todos estavam dançando, era incrível. Os baianos e a sua incrível moqueca! Simplesmente adoro a comida brasileira. É este o conselho que daria para Salvador, Belo Horizonte, São Paulo…: investir em infraestrutura orientada para pessoas, este é o futuro.
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