Mais de 13 milhões de pessoas trabalham no período noturno, de acordo com o IBGE. Segundo os dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), em 2016, cerca de 1,8 milhão de alunos matriculados no ensino médio estudavam à noite. O Censo da Educação Superior 2018 mostra que os cursos noturnos de graduação presencial nas universidades brasileiras possuem mais estudantes matriculados do que nos cursos diurnos. A ocupação do espaço urbano à noite demanda novas maneiras de pensar a mobilidade, mas as cidades brasileiras ainda não estão preparadas para essa realidade.
Florianópolis é um dos municípios brasileiros com horários limitados do transporte público. Os ônibus param de circular em média à 0h e retornam às 6h. Em São Paulo, algumas linhas de ônibus funcionam durante toda madrugada, mas o metrô, que é um dos principais meios de transportes da cidade, não funciona 24 horas por dia. Salvador passou a ter uma rede noturna de ônibus em 2015, mas as linhas não atendem toda a cidade.
Ônibus noturno em terminal de São Paulo. Foto: Leon Rodrigues/Secom
Outras capitais do país possuem projetos voltados para mobilidade noturna. No geral, são linhas específicas de ônibus que circulam à noite, mas que costumam ser mal distribuídas pela cidade. Beatriz Rodrigues, coordenadora de transporte público do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento), explica que a qualidade do transporte noturno poderia melhorar o bem-estar das pessoas nas cidades. “Olhando para as capitais brasileiras, o que existe é um transporte público de ônibus que não cobre muito bem a cidade, muitas vezes o metrô ou o trem funcionam até as 22h, 23h... isso limita muito a qualidade de vida dos usuários”, diz a engenheira. “Os ônibus não passarem por diversas rotas faz diferença sobre como a pessoa vai se locomover na cidade. Que tipo de experiência a pessoa vai ter na cidade, ela vai deixar ou não de se locomover por conta dessa falta de mobilidade?”, argumenta.
Oferta
O professor e doutor em geografia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Marcos Paulo Ferreira de Góis explica que um dos grandes problemas da mobilidade noturna é a diminuição da oferta dos serviços de transporte público entre 20h e 4h ou 6h. O professor, que desenvolve pesquisas sobre mobilidade noturna, vida noturna e iluminação pública no Rio de Janeiro, explica que em algumas regiões da cidade o serviço ainda não é disponibilizado. “Olhando a Região Metropolitana do Rio, algumas áreas não tinham mais transporte à noite, nenhuma opção, e as pessoas dependiam de criar estratégias para esperar o primeiro transporte da manhã para conseguir voltar pra casa”, diz Góis.
Em uma de suas pesquisas, o professor acompanhou um grupo de pessoas que moram em Belford Roxo, município da Região Metropolitana, e que só conseguiam voltar para a casa de trem, “só que o trem só começava a circular umas 4h30, então elas planejavam a noite para conseguir aguentar até pegar o primeiro trem”, conta. “Tinham outros problemas, pessoas que moravam em Campo Grande, Santa Cruz dependiam do 393 e o 397. O ônibus existiam e tinha muita demanda por eles, mas poucos horários na madrugada, então as pessoas pegavam superlotação às 2h. Já em outros casos, por causa dessa desigual distribuição dos serviços na cidade, havia uma farta oferta desses meios de transporte, como para a Zona Sul”, diz Marcos Paulo Góis.
Julyanna Ramos, estudante de enfermagem e usuária do transporte público no período noturno capixaba, relata a insegurança e a espera por conta da redução da frota de ônibus: “Eu pego o ônibus 526 no terminal de Campo Grande todo dia. São 20 km do meu trabalho até a minha casa. O ônibus demora demais para chegar, porque depois das 22h a frota de ônibus começa a reduzir, então eu espero muito no ponto e no terminal. A linha 526 passa por Jardim América, Vasco da Gama e Lindenberg, são lugares muito perigosos e escuros, morro de medo. Qualquer pessoa que entra no ônibus, seja homem ou mulher, ficamos apreensivos”, conta em entrevista ao jornal Nexo.
Segurança
Está em tramitação no Senado o Projeto de Lei n° 3258, de 2019, que confere às mulheres, aos idosos e às pessoas com deficiência o direito de desembarcar do transporte coletivo fora do ponto de parada à noite. Além disso, o projeto determina à União, aos Estados e aos Municípios “a adoção de políticas que aumentem a segurança do usuário do transporte público, sobretudo no período noturno”. Projetos de leis com a mesma proposta já foram aprovados em outros municípios brasileiros, destinado a incentivar medidas e iniciativas que visem principalmente à segurança das mulheres que utilizam ônibus à noite.
As iniciativas são vistas como positivas, como argumenta a engenheira Beatriz Rodrigues, que diz que o transporte público por si só não é suficiente para resolver a mobilidade noturna. Segundo ela, é importante estar atrelado a outras temáticas, como o planejamento urbano e as conexões com a mobilidade a pé ou por bicicleta e, mais diretamente, garantindo a segurança pública.
“Em um trabalho que fiz em Recife ficou claro que muitas vezes as mulheres preferiam usar a bicicleta do que usar o transporte público por ônibus porque elas se sentiam mais seguras sobre a chegada delas ao destino final.” “Ainda mais se você vai falar de mobilidade com crianças pequenas, principalmente de 0 a 3 anos, muita gente deixa de sair de casa porque não se sente seguro o suficiente para estar com uma criança de colo, então é preciso pensar como isso pode afetar o desenvolvimento infantil também”, lembra.
“Quando a gente fala de mobilidade noturna, claro que os transportes públicos são o principal, mas e as questões de planejamento urbano?”, questiona Rodrigues. “No entorno de um ponto de ônibus e no entorno de uma estação de metrô, se você tem um comércio noturno que traz outra vivência e vibração para a rua, uma boa iluminação, faz muita diferença para a percepção de segurança.”
Iluminação
Iluminação pública é uma das estratégias para gerar segurança no período noturno nas cidades. Em sua dissertação, o professor Marcos Paulo Góis buscou entender as políticas públicas relacionadas à área no município do Rio de Janeiro. Ele explica que o problema é a forma como a iluminação é distribuída na cidade: “O que se notou na pesquisa é que tinha um problema relacionado aos lugares da cidade onde a manutenção da iluminação é feita, e lugares onde não é”, diz.
“Lugares que têm maior visibilidade acabam recebendo mais atenção, não só do poder público, mas também dos agentes privados. Mas ainda há áreas com precariedade em relação à manutenção dessa iluminação, o que realmente causa alguns problemas, na orientação dos deslocamentos, na segurança, na visibilidade, nos riscos que estão associados, nas calçadas, isso causa um problema do cotidiano da população”, explica Góis.
Faixa de travessia iluminada próxima ao Hospital Pedro II, no Rio. Foto: Thatiana Murillo/ Mobilize
Segundo o professor, outro problema é como são pensados os projetos de iluminação para espaços públicos, “em geral, valoriza-se muito a circulação dos veículos e pouco dos pedestres — que também é um uso feito nos lugares de sociabilidade”. Góis avalia que é importante adaptar a luminosidade ao interesse das pessoas, “o que elas querem fazer na cidade, que tipo de iluminação talvez favoreça que elas possam exercer essas atividades nos espaços públicos? Uma luz que serve para iluminar um fluxo de veículos talvez não seja muito útil para a sociabilidade”.
A doutora em sociologia urbana Manuela Blanc abre um debate relevante para a mobilidade noturna. Ela explica que “por a noite ser um horário de menor visibilidade, é preciso espaços públicos mais atrativos”. “Vários autores vão defender a importância que as praças, as calçadas, os espaços públicos de circulação e sociabilidade sejam mais hospitaleiros, para atrair a presença das pessoas. Na prática é isso que permite a segurança, a realização de práticas sociais naturais, com ruas ocupadas, bem sinalizadas, bem iluminadas, com pessoas circulando, tendem a ser espaços mais seguros em vários sentidos”, explica a cientista social.
Solidariedade noturna
Por meio de estudos em geografia urbana, o professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Clímaco Dias desenvolveu sua pesquisa de doutorado sobre estratégias de sobrevivência socioespaciais da população nos bairros populares de Salvador. A pesquisa, que abrangeu 36 bairros, levantou algumas práticas de solidariedade entre vizinhos para diminuir o impacto da falta de serviços públicos nas periferias no período noturno. Por conta da insegurança, o professor conta que mapeou grupos de mulheres que se organizam para voltarem juntas do trabalho noturno como defesa contra os assaltos nas áreas centrais da cidade.
O professor lembra também que, por a mobilidade ser ainda mais difícil à noite, em situações de emergência, é comum que pessoas proprietárias de automóveis façam o transporte de vizinhos doentes nos bairros populares.
“Se uma pessoa adoece na periferia à noite, ela pode até ter dinheiro, mas a possibilidade de ser atendida pelo serviço público ou táxi é difícil. Na periferia, muitas vezes você não tem ambulância, não tem táxi, ônibus”, diz o professor. “A mobilidade perpassa todas as questões: da saúde, da educação, da segurança. A mobilidade influencia em todos os serviços e todos esses serviços influenciam na mobilidade”.
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