O olhar de Sebastião Santana de Souza, 68, parece sempre procurar o chão. A linguagem corporal do homem de cabelos brancos, como as pedras do petit-pavé, e a pele bronzeada pelas jornadas ao ar livre denuncia a timidez e antecipa as poucas palavras que usa para falar do trabalho.
Há mais de 50 anos, ele monta calçadas portuguesas por todo o Brasil. Entre as obras mais famosas do calceteiro estão o desenho das ondas do mar, no Rio de Janeiro, onde morou por oito anos. Por lá, ajudou a criar o traçado do Aterro do Flamengo. “Fizemos o desenho de mar, aquele que passa na televisão”, diz, lamentando por não ter trabalhado no icônico calçadão de Copacabana. Natural de Ponta Grossa, Paraná, Sebastião aprendeu com os tios a encaixar o petit-pavé preto e branco —e, mais raro, vermelho castanho— formando desenhos que ilustram a história das cidades.
Primos e irmãos exercem a função até hoje. Até o pai se inspirou e viveu seus últimos 15 anos como calceteiro. Ele não lembra a data, mas afirma que antes mesmo dos 18 anos já tinha os moldes de madeira que ele fez e a marreta como instrumentos de trabalho. “Trabalhava com meus tios quase de graça para poder aprender”, diz. “Outros tipos de pavimento se aprendem rápido. Começa hoje e já tá trabalhando amanhã, mas, esse, demora de dois a três anos pra pegar [o jeito].”
Também nasceram das mãos de Sebastião algumas calçadas em preto e branco de São Paulo: no Guarujá, por exemplo, deixou andorinhas. Mas é o Paraná que mais ostenta seu petit-pavé, nome como ficou conhecido o mosaico português no estado. No litoral, montou peixes. Na região de Curitiba, xícaras.
Santana de Souza exibe moldes do padrão curitibano de calçadas Foto: Karine Xavier/Folhapress
“Cada cidade tem um símbolo”, diz o artista ao admirar o desenho de pinhão, marca paranaense, recém-cravado por ele no chão da capital.
Suas habilidades são requisitadas também para trabalhos privados. “Às vezes, me encomendam desenhos que não têm muito sentido”, reclama. Um dos mais inusitados e complexos foi de labirinto. “De tão difícil, ficou feio”, ri.
Em Curitiba, ele se orgulha de ter construído nos anos 1970 os primeiros passeios de modelo português, do centro, que contribuem para marcar a identidade local. Passadas quatro décadas, voltou para reformar o entorno da praça Osório, em requalificação.
O ofício se manteve idêntico ao longo dos anos, lento e artesanal. Cada pedra tem que ser lapidada à mão para se adaptar ao desenho do molde. Mas o modelo teve que se adequar às necessidades das cidades modernas, como acessibilidade. Na atual reforma em Curitiba, o petit-pavé ocupa meia calçada, e o outro lado está sendo assentado com piso tátil.
“Algumas cidades têm adotado faixas de concreto liso, desenhadas de forma coerente com os padrões do piso português, e que permitem a circulação segura e confortável de cadeirantes, idosos, cegos e outras pessoas com restrição de mobilidade”, afirma Marcos de Sousa, integrante do Mobilize Brasil, entidade que avaliou a qualidade das calçadas nas capitais brasileiras.
A Prefeitura São Paulo foi mais drástica e anunciou, em junho, os últimos dias das calçadas portuguesas do centro, com a substituição por placas de concreto. Em 2007, a cidade eliminara esse tipo de pavimento da Avenida Paulista. Mesmo em Portugal o piso vem sendo erradicado. Em Curitiba, a administração optou por unir tradição e modernidade na revitalização.
“A calçada não pode ser encarada de maneira menos favorecida que o imóvel edificado de valor cultural”, defende a autora do livro “Calçadas de Curitiba: preservar é preciso”, Lúcia Vasconcelos. “São também representativas no planejamento urbano. Nada impede que o antigo, recuperado, seja conciliado harmonicamente com o novo”, completa.
Para avaliar as calçadas, o Mobilize monitora largura, regularidade e paisagismo. No levantamento divulgado no mês passado, São Paulo ocupa a primeira posição, com 6,93 pontos —ainda distante da nota 10. A última colocada é Belém (PA), com 4,52. Já Curitiba, onde Sebastião trabalha, está no 11º lugar (6,02).
Para os especialistas, o problema não é o petit-pavé, mas a manutenção após intervenções de obras subterrâneas. “Nenhum piso resiste a esse tratamento agressivo”, diz Marcos. Porém, o custo da mão de obra para realizar esse tipo de trabalho faz com que as calçadas vivam “cheias de remendo”, como ele aponta.
A importância do piso para a história e identidade da cidade, no entanto, passa despercebida aos olhos de Sebastião, depois de meio século no ofício. “Como a gente trabalha há muitos anos, já reformamos muitas obras que nós mesmos fizemos”, explica com naturalidade.
Origem dos calceteiros no Brasil tem poucos registros
A função de calceteiro só foi reconhecida como arte com reforma no calçadão de Copacabana. A arquiteta Lúcia Vasconcelos, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, destaca em seu livro que o ofício de calceteiro chegou ao Brasil com os portugueses, mas que não há dados sobre quem criou primeiro esse tipo de pavimento no país.
As primeiras calçadas no estilo foram feitas em torno do Teatro Amazonas, em Manaus (AM), e no Rio de Janeiro (RJ), nos primeiros anos do século passado. “O próprio artista da arte da calcetaria era quem executava o serviço, e era considerado um peão de obra”, diz Lúcia.
Em Curitiba, a chegada do piso ocorreu no final dos anos 1920, com a preocupação de várias localidades em formar suas identidades regionais. Isso se reflete nos desenhos no chão, a maioria aludindo à natureza, com araucárias, pinhas e pinhões, ou a símbolos culturais, como arte indígena e remanescentes da art nouveau e art déco francesas.
“Essas calçadas, por seus desenhos, representam a história e a cultura de uma época”, aponta a autora.
A arte, explica, só se tornou mais reconhecida depois de assumida por arquitetos, como o paisagista Roberto Burle Marx (1909-94), que redesenhou o mosaico português para Copacabana, em 1970. O traçado é igual ao da Praça do Rocio, em Lisboa, onde o desenho simboliza o encontro do Tejo com o oceano —e, no Rio, as ondas do mar.
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