Dublin é uma cidade de origem medieval, com ruas estreitas. A maior parte da cidade é plana, mas não é totalmente coberta por ciclovias e ciclofaixas. Em muitas ruas, por falta de espaço, os ciclistas compartilham a faixa com aqueles ônibus grandalhões, de dois andares.
E, acreditem, funciona bem porque os motoristas são treinados para essa convivência pacífica com ciclistas. O treinamento é feito em realidade virtual para que os motoristas possam sentir como é pedalar com um ônibus no seu encalço.
Mas, não... não foi o medo de ter um ônibus de dois andares na sua cola que fez Mart'nália deixar de pedalar na cidade. Ela adora bicicleta e tinha aceito o convite para a Bike Parade da Velo-City. Mas, bateu aquele vento do Mar do Norte e ela preferiu enrolar o cachecol no pescoço e esticar as pernas perto do hotel. A voz é seu instrumento de trabalho e numa turnê pela Europa, todo cuidado é pouco. Numa lojinha de produtos chineses, comprou chás e outros remédios naturais. "Estou aqui em pleno verão, mas toda encapuzada...tem um vento muito gelado aqui que bate na garganta. E eu não tô acostumada", justificou.
Mart'nália sonda uma bicicleta, mas sente o vento frio e decide resguardar sua voz. E em plena Dublin...
...busca um chá especial em uma lojinha chinesa
Fotos: Denise Silveira
Mart'nália é uma das maiores artistas do Brasil. Seu nome é a contração dos nomes dos pais, Martinho da Vila, ícone da cultura nacional, e Anália Mendonça, cantora. Vencedora do Grammy Latino em 2017, também fez sucesso como atriz ao interpretar um homem transexual numa série de tevê, e suas músicas fazem parte das trilhas sonoras das novelas. Nascida em Vila Isabel, reduto do samba, hoje mora na Lagoa, cartão postal do Rio de Janeiro, onde garante fazer quase tudo de bicicleta.
Em Dublin, foi impossível conversar com Mart'nália sem que a entrevista fosse interrompida várias vezes por brasileiros que a reconheciam e pediam para tirar fotos, principalmente selfies. "Aqui é uma novidade, né? Nunca vim para cá... é a primeira vez. Mas sempre é gostoso, carinhoso, né? Acabei de encontrar aqui a filha de uma amiga com quem eu estudei no pré-vestibular", diz. Mart'nália curte a coincidência, leva tudo com bom humor e ri ao fazer a analogia de que a música segue com o vento, sem fronteiras.
A turnê "Mart'nália canta Vinícius de Moraes" passou pela Irlanda, Holanda, França e Portugal. A poesia lírica de Vinícius lhe é familiar. Mart'nália o conheceu pessoalmente e lembra que de tanto Martinho da Vila assobiar as canções do "Poetinha", achava que eram do pai. Cheia de bossa, conta que agora tem ouvido a francesa Carla Bruni, parceira na gravação de Quelle grande sottise, "Insensatez", na versão em francês. A gravação foi uma ideia original de sua empresária Marcia Alvarez, explica.
A cantora não usa fones enquanto pedala. Como boa musicista, não consegue deixar de prestar atenção ao que acontece dentro da música toda. E por segurança, prefere concentrar sua atenção no guidão e no trânsito. "Infelizmente acontece muito acidente, e até perdi amigos, como o André". O baixista André Rodrigues morreu depois de ser atropelado enquanto pedalava no Aterro do Flamengo, no domingo de Páscoa do ano passado. O motorista fugiu sem prestar socorro.
Mart'nália sente falta de uma mobilização maior em torno da bicicleta. "Podia ter uma campanha grande da Caloi, da sei lá o que, entendeu? Mesmo nas periferias. É uma coisa muito legal. Para a saúde e independente da saúde, você não tá preso nos lugares. E se houvesse uma campanha maior para a difusão da bicicleta, aí talvez as pessoas até parassem de roubar", acredita.
No Rio, como boa carioca, Mart'nália às vezes joga vôlei de praia. Mas a bicicleta é o "Samba da Benção". "A bicicleta me dá uma liberdade a mais de tudo. Eu tenho moto, tenho bicicleta, e minhas motos são mais pra bicicleta do que pra moto. São mais moderninhas assim. Mas eu gosto de bicicleta", encerra com a última risada.
E, completamente adaptada a Dublin, me orienta a pegar o táxi do lado certo "porque aqui, a mão é inglesa".
*Denise Silveira, 50, é jornalista e documentarista. Participou da Velo-City, em Dublin, como conferencista no painel "Mídia, Amiga ou Inimiga". Seu filme "Ciclovia Musical" ganhou Menção Honrosa no Mobifilm 2018, Festival Brasileiro sobre Mobilidade e Segurança no Trânsito. Ela aproveitou a estada na Irlanda para entrevistar personalidades, fazer fotos e registrar alguns lances legais.
Leia o primeiro texto sobre o Velo-City
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