Pequenas histórias do Velo-City 2019

Como a maior conferência internacional realizada pela Federação Europeia de Ciclistas ajuda a promover a mobilidade em todas as partes do mundo. Inclusive aqui no Brasil

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Denise Silveira*  |  Postado em: 23 de julho de 2019

Ciclistas em Dublin durante o Velo City 2019

Ciclistas em Dublin durante o Velo City 2019

créditos: weelz.fr

A jornalista e documentarista Denise Silveira foi uma das palestrantes do Velo-City 2019, que aconteceu em junho, na cidade de Dublin, Irlanda. Além de falar sobre seu filme Ciclovia Musical, ela aproveitou a estada para registrar o evento em entrevistas e pequenas fotos obtidas com seu celular.


Este primeiro texto mostra o panorama geral de Dublin e do Velo-City, além de contar a história do brasileiro Carlos Oliveira, da organização Pedala Queimados, que também estava lá na Irlanda

 

É verão em Dublin e a temperatura varia entre 13 e 21 graus Celsius.  Na longa avenida cortada pelo rio Liffey, o semáforo abre para um caminhão-pipa e fecha para pedestres e ciclistas. A cena pode parecer comum, mas aqui o caminhão não leva água. Carrega milhares de litros de Guinness, a cerveja preta símbolo da Irlanda, que também dá nome ao Livro Guinness dos Recordes.  

 

Caminhão transporta um dos símbolos da Irlanda, a cerveja Guinnes Foto: Denise Silveira

 

A arquitetura do Centro de Convenções chama a atenção. Um cone de vidro ganha vida, sai de dentro de um bloco de concreto que dá forma ao prédio. Nessa parte envidraçada estão as escadas rolantes que dão acesso ao auditório e diferentes salas. Kevin Roche, autor do projeto e vencedor do Prêmio Pritzker, o "Nobel" da arquitetura, falecido em março deste ano, faz com que a gente se sinta dentro do rio. Uma experiência sensorial que ganha ainda mais força quando se mistura às diferentes línguas que podem ser ouvidas pelos corredores.  

 

O Centro de Convenções de Dublin: projeto de Kevin Roche sediou o Velo-City 2019 Foto: Divulgação


São 300 painelistas em mais de 80 sessões voltadas a um público de cerca de 1.400 amantes da bicicleta. Cicloativistas, consultores, técnicos, especialistas, políticos, administradores públicos, pesquisadores de diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento. 

 

Vélo é bicicleta em francês. E a Velo-City é a maior conferência do mundo na área de ciclismo, cicloturismo, infraestrutura cicloviária,  inovações tecnológicas, segurança, desenvolvimento social e cultural. Não importa a sua área, se o seu tema é bicicleta, com certeza você vai encontrar alguma novidade aqui. Um trabalho excepcional da Federação Europeia de Ciclistas realizado a cada ano em uma cidade diferente. Ano passado foi no Rio de Janeiro. Ano que vem será em Lubliana, capital da Eslovênia. Em 2021, Lisboa, Portugal. 

 

Quem poderia imaginar que 39 anos depois da primeira edição, em Bremen, na Alemanha, uma das inovações seria o aplicativo desenvolvido especialmente para o evento.  Pelo "app" era possível acompanhar a programação, receber alertas, responder e fazer perguntas durante os painéis. Além de ter acesso aos audio guias de passeios pela cidade, rotas alternativas para bicicleta e também cadeira de rodas.  A tecnologia aposentou de vez o cartão de visitas. Bastava escanear com a câmera do celular o QR Code do crachá do interlocutor e sua agenda ganhava mais um contato, devidamente salvo em ordem alfabética.  

 

A cidade do futuro é aqui. Pelo menos na cerimônia de abertura. Um dos palestrantes confessa que não conseguiu dormir na noite anterior. É Phillipe Crist, consultor de inovação do Fórum Internacional de Transporte (ITF) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), sediada na França. Ele tem dupla nacionalidade, é franco-americano, ex-ciclista de competição, e agora pedala a esperança do futuro. Numa publicação muito simpática numa rede social ele resume de maneira afetuosa a experiência de falar sobre um assunto tão especial para uma plateia de convertidos que acredita que o futuro vem de bicicleta: "Quando parei de falar, minha mente estava vazia. Um espaço em branco completo. Mas meu coração estava cheio. Assim como eu espero que o do público também esteja. 

 

Crist compartilha a experiência de dar um google em "cidade do futuro". Você pode interromper a leitura e fazer o mesmo. Clique em imagens. Observe e depois volte para este texto. O resultado da sua busca é exatamente o mesmo de Crist. Cidades futuristas, prédios inteligentes, carros que voam. 

 

"Quando discutimos nossa visão da cidade do futuro, ela diz mais sobre onde nós viemos, onde nós estamos agora, do que onde estaremos no futuro", diz Crist.

 

Lembra  "Blade Runner - O Caçador de Andróides", ficção científica dos anos 80. Mas, se o filme sobre o futuro dirigido por Ridley Scott passa bem longe da inclusão pela tecnologia, imagine para quem nasceu em Queimados, na Baixada Fluminense. 

 

Essa é a história de Carlos Oliveira, um dos painelistas na sessão sobre Engajamento - Resistência e Inspiração rumo à cidade do ciclismo em 2030. O título faz referência à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, Organização das Nações Unidas.

 

Em apenas alguns minutos, o gestor ambiental precisa apresentar o trabalho e conquistar os presentes para ouvi-lo  em sua mesa. Um formato conhecido também como "pitch", muito usado por startups para atrair investidores. 

 Na Velo-City, Carlos Oliveira apresenta as ações da Pedala Queimados Foto: Denise Silveira


Mesmo sem falar uma palavra em inglês, Carlos se fez entender. Foi auxiliado por Ana Carboni, que serviu de intérprete. Carboni é consultora da União de Ciclistas do Brasil e também parte da lista de brasileiros com trabalhos selecionados para a conferência. Com a barreira da língua superada, Carlos surpreende a cada frase. 

 

Atualmente, recebe apoio financeiro de um fundo socioambiental. Ele busca doações de bicicletas usadas,  faz reparos, e entrega para cerca de 10 mil moradores de baixa renda. Além de não receber nenhuma ajuda governamental, ele ainda precisou lidar com os problemas de uma área de disputa entre o tráfico de drogas e as milícias.

 

Carlos faz a costura entre duas pontas: a macroeconomia e a micromobilidade. Ele ajuda os moradores que fazem parte de uma estatística nacional de mais de 13 milhões de desempregados a conseguir uma pequena renda como entregadores de bicicleta para o comércio local. Como não tem bicicleta para todo mundo, o uso é compartilhado e os moradores aprendem a fazer autogestão. Pelo trabalho, Carlos recebeu um prêmio em dinheiro ano passado da Embaixada Holandesa de Ciclismo, o equivalente a cerca de R$ 6 mil. 

 Cédric Delbovier, da Pro Velo, em roda de conversa com o brasileiro Carlos Oliveira Foto: Denise Silveira

 

A mais recente atividade de Carlos chamou a atenção de Cédric Delbovier, funcionário há 13 anos da Pro Velo, associação sem fins lucrativos da Bélgica. O objetivo da Pro Velo é incentivar a mobilidade ativa e facilitar a transição das pessoas para o ciclismo. Além de trabalhar na comunicação, Delbovier integra uma equipe de educação para que crianças de 8 a 12 anos aprendam a pedalar sozinhas e em segurança no trânsito de Liège, na Valônia, a parte francófona da Bélgica. Mesmo com os obstáculos naturais que separam motoristas e ciclistas em qualquer lugar do planeta, o futuro em Liège é construído no presente.

 

Em Queimados, Carlos luta para erguer os primeiros pilares dessa ponte numa região desprotegida socialmente. "Quem vai cuidar do meu filho quando ele tiver 15 anos"?

 

A pergunta que ecoa na mente de Carlos resultou numa nova batalha. Começar a recuperar jovens egressos do sistema prisional capacitando-os na confecção artesanal de bicicletas de bambu, para que eles tenham renda e não voltem a reincidir no crime.

"É preciso devolver as ruas às pessoas. Não precisa de tecnologia para isso", diz Carlos.

 

Delbovier nunca tinha ouvido falar em Carlos antes, mas tem objetivos em comum. Na Bélgica, a Pro Velo recebe infratores de trânsito. Em vez de pagar uma multa, eles acompanham os educadores nas escolas e ajudam nos passeios de bicicleta na rua. Isso os torna conscientes das consequências da alta velocidade, por exemplo, numa cidade ou vilarejo.

 

"Pedala Queimados é um projeto lindo. Ajuda as pessoas esquecidas e não respeitadas pelas autoridades", diz Delbovier.  Na Velo-city a distância que separa Liège de Queimados é a circunferência de uma mesa. 

 

 


 

R$ 1,40 no bolso e 400 km para pedalar
Breve perfil de Carlos Oliveira, da ONG Pedala Queimados

Carlos Oliveira e Ana Cristina na viagem Rio-São Paulo Foto: Arquivo pessoal

A cidade do futuro de Carlos está no gatilho de uma arma. Queimados é um dos municípios com mais mortes violentas no Brasil, segundo o Atlas da Violência, produzido pelo IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, e FBSP, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nem mesmo a falta de melhores condições financeiras fez com que Carlos deixasse de perseguir um futuro melhor. Em 2015, com apenas R$1,40 no bolso e duas caixas de balas para vender no caminho, pedalou cerca de 400 km com a esposa, Ana Cristina, até São Paulo. O objetivo era chegar a tempo para o aniversário do irmão que completaria 40 anos.

 

Ana Cristina lembra quando embarcou nessa aventura que durou quatro dias. O casal pedalava das cinco da manhã até às seis da tarde e dormia em postos de gasolina. - Ele ficava muito preocupado que acontecesse alguma coisa comigo na pista. Mas, ele não dizia isso pra mim. Só quando a gente chegou lá. Carlos viajou para Dublin com apoio da iniciativa privada e de uma organização da sociedade civil. Com o dinheiro que recebeu para estadia e alimentação suficiente para uma semana no exterior, fez compras para deixar mantimentos para a esposa grávida e um filho de três anos. Ao invés de um hotel, hospedou-se num albergue com quartos e banheiros coletivos. Quando a diária aumentou com a chegada do fim-de-semana, fez check out e foi para a rua. Passou a noite pedalando por Dublin, já que poderia dormir um pouco no avião no dia seguinte.

 

Engana-se quem acha que ele voltaria para o Brasil. Sem dinheiro, pela primeira vez na Europa, Carlos ainda foi conhecer Amsterdã e outras cidades da Holanda, o paraíso dos ciclistas. Se hospedou na casa de conhecidos e fez visitas técnicas a entidades apoiadoras da ONG Pedala Queimados. Na volta para casa, ao desembarcar no Aeroporto Internacional Tom Jobim, conhecido como Galeão, pegou um ônibus comum.

 

O país, à sua espera, o recebeu com um tiroteio na Avenida Brasil. Felizmente para Carlos e todos que sonham outro futuro para Queimados, ele não foi atingido. Chegou a tempo de comemorar mais uma conquista. Uma parceria com o Movimento La Frida, de Salvador e Recôncavo, apresentado na Velo-city por Livia Suarez, e Preta, vem de Bike, São Paulo. O projeto em conjunto para troca de experiências é um dos novos selecionados de um edital de intercâmbio socioambiental. 

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Denise Silveira, 50, é jornalista e documentarista. Participou da Velo-city como conferencista no painel "Mídia, Amiga ou Inimiga". 
Seu filme "Ciclovia Musical" ganhou Menção Honrosa no Mobifilm 2018, Festival Brasileiro sobre Mobilidade e Segurança no Trânsito

 


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Velo-city 2019 short stories



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