Fatos corriqueiros, em pequenas localidades do interior, podem esclarecer dúvidas comuns a cidades de todo o país. Em junho passado a equipe do Mobilize recebeu mensagem de uma pessoa residente em Porto União (SC) questionando a legalidade e a forma pela qual o Ministério Público e a Prefeitura local estão desenvolvendo a melhoria da acessibilidade e caminhabilidade nas calçadas da cidade.
Consideramos o caso exemplar porque discute uma suposta contradição entre o que está previsto na Lei 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão - LBI) e as normas e legislações específicas de cada município. Para esclarecer a questão, fomos ouvir a Prefeitura, o Ministério Público e também tentamos obter esclarecimentos da assessoria da senadora Mara Gabrilli, que quando deputada foi relatora da LBI.
O texto do leitor informava que "... há mais ou menos um ano o Ministério Público de Santa Catarina vem obrigando os proprietários de imóveis de uma área de bairros centrais da cidade a pagarem pela construção das novas calçadas, inclusive instituindo multa e realizando reuniões aonde (sic) os proprietários são ameaçados caso não realizem a obra a partir do momento que recebem os Termos de Ajuste de Conduta. Gostaria de saber se vocês possuem orientação jurídica para este caso, já que a obrigatoriedade pela construção seria do município, conforme indica a LBI..."
Em seu Art. 113, a LBI reporta-se ao Estatuto da Cidade e estabelece nova redação para essa legislação federal:
A Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade) passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 3º Compete à União, entre outras atribuições de interesse da política urbana:
...
III - promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais, de saneamento básico, das calçadas, dos passeios públicos, do mobiliário urbano e dos demais espaços de uso público;
IV - instituir diretrizes para desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico, transporte e mobilidade urbana, que incluam regras de acessibilidade aos locais de uso público;
...
§ 3º As cidades de que trata o caput deste artigo devem elaborar plano de rotas acessíveis, compatível com o plano diretor no qual está inserido, que disponha sobre os passeios públicos a serem implantados ou reformados pelo poder público, com vistas a garantir acessibilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida a todas as rotas e vias existentes, inclusive as que concentrem os focos geradores de maior circulação de pedestres, como os órgãos públicos e os locais de prestação de serviços públicos e privados de saúde, educação, assistência social, esporte, cultura, correios e telégrafos, bancos, entre outros, sempre que possível de maneira integrada com os sistemas de transporte coletivo de passageiros.”
Numa primeira leitura entende-se que caberia aos governos federal, estadual e municipal desenvolver programas para a melhoria de calçadas, passeios públicos e mobiliário urbano. O parágrafo 3º também responsabiliza as cidades a elaborarem planos de rotas acessíveis, a partir dos quais se definiriam quais calçadas e passeios públicos devem ser implantados ou reformados pelo poder público.
Entrevistado por telefone, o promotor Tiago Davi Schmitt, do MPSC explicou que depois de conviver muitos anos com a falta de zelo nas calçadas da cidade, em meados de 2018 decidiu tomar a iniciativa de delimitar uma área na região central, identificar os proprietários dos imóveis e notificá-los sobre o problema.
"A cidade já tinha uma legislação, mas faltava regulamentar os padrões de calçadas que deveriam ser adotados. Se fossemos esperar a ação do poder público, não teríamos essa mudança nos prazos necessários. Definimos uma área e estamos chamando os munícipes para propor a regularização conforme os padrões definidos pela lei municipal. Estudamos o assunto junto com a prefeitura e concluímos que os blocos intertravados de concreto seria a solução mais adequada para a cidade", justifica o promotor.
Termos de Ajuste de Conduta
Davi Schmitt adotou a estratégia de notificar individualmente os proprietários de imóveis da área prioritária, rua por rua, para garantir a continuidade das calçadas entre os imóveis. As pessoas recebem uma notificação, são chamadas a uma audiência na qual o promotor explica o que e como deve ser ajustada a calçada, e estabelece um prazo de seis meses para as obras, tudo registrado em um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) assinado pelo munícipe.
A pessoa contrata uma empresa para realizar os serviços e após a conclusão leva a ART (documento de responsabilidade técnica assinado por um engenheiro, arquiteto ou técnico) para a prefeitura. Após a fiscalização e aprovação pela prefeitura, a pessoa entrega a documentação ao Ministério Público para encerramento do processo. Caso o proprietário recuse o TAC a prefeitura realiza as obras de regularização e cobra o valor acrescido de 20% do proprietário na forma de uma Contribuição de Melhoria.
A advogada Juliana Hochstein Posenatto, assessora juridica da prefeitura, explicou que o Código de Posturas de Porto União responsabiliza o proprietário ou responsável do imóvel pela conservação das calçadas e já estabelece a multa de 20% caso as obras não sejam realizadas conforme os padrões municipais. "A legislação já existia desde o ano 2000, mas não era colocada em prática. O promotor procurou a prefeitura, ajudou a equipe a definir um padrão de construção e tomou a iniciativa de definir a área prioritária e notificar os proprietários. Começamos pelos imóveis públicos, em 2018, e em seguida abordamos os imóveis particulares da área central da cidade", lembra a assessora.
Até junho passado, cerca de 400 imóveis já haviam ajustado suas calçadas, algo próximo de 50% das edificações da área prioritária. Mas o objetivo é chegar a 100%, ou cerca de 40 quadras, até meados de 2020. Após essa etapa inicial, o MP e a Prefeitura estenderão a ação a todas as ruas da cidade.
Reações
O promotor Tiago Davi Schmitt compreende que algumas pessoas reajam negativamente à iniciativa porque as pessoas se acostumaram com a condição ruim das calçadas. Mas ele argumenta que após os primeiros resultados, a opinião pública passou a compreender os ganhos que a campanha trouxe para a cidade. "Alguns poucos proprietários se recusaram a realizar as obras e usaram a Lei Brasileira de Inclusão como argumento. Mas, a LBI cita textualmente as chamadas rotas acessíveis, que deveriam ser previstas no plano diretor da cidade. Nós estamos trabalhando para recuperar todas as calçadas da cidade, conforme a legislação do município. "E fico satisfeito, porque agora nós já vemos pessoas com deficiência visual circulando nas ruas e acessando os serviços, até aqui, no próprio Ministério Público", explica Schmitt.
A advogada Juliana Hochstein Posenatto frisa também que a ação foi iniciada com uma campanha envolvendo toda a cidade. "Nós adotamos a Cartilha de Acessibilidade do Crea/SC e procuramos orientar todas as pessoas sobre como resolver os problemas em suas calçadas. E no caso de o pavimento estar regular, nivelado, em bom estado, nós apenas pedimos que a pessoa faça a inserção da faixa podotátil, sem a necessidade de trocar um piso de concreto ou de ladrilho hidráulico por blocos intertravados. Mas, para obras novas, hoje a prefeitura não emite o alvará se a calçada não estiver completamente acessível", explicou Juliana em sua entrevista, também por telefone.
Rua Major Costa, no Centro, antes das obras de renovação das calçadas Foto: MPSC
Como Porto União está renovando suas calçadas
# Ministério Público e Prefeitura identificam os imóveis com calçadas irregulares
# Proprietários são chamados ao MP para receber orientação e assinar um TAC
# Obras de ajuste são realizadas por construtores, conforme a legislação municipal
# Após as obras os proprietários entregam documentação comprobatória na Prefeitura
# Prefeitura realiza fiscalização na calçada e verifica se tudo está de acordo com as normas
# Após a aprovação da Prefeitura, proprietário leva documentos ao MP e encerra processo
# Caso o munícipe não aceite ou não cumpra o TAC no prazo fixado, a Prefeitura realiza as obras e cobra o valor com 20% de acréscimo
Padrão adotado
Pela lei de Porto União, as calçadas têm de ser feitas com piso intertravado e faixas de piso podotátil, com custo médio de 80 reais por metro quadrado. A solução foi adotada para facilitar as obras subterrâneas de esgotos, em várias ruas da cidade, segundo o promotor: "em caso de obras, esse piso pode ser desmontado e recolocado com facilidade. Quando começamos, o custo estava em 150 reais por metro quadrado, mas a chegada de outros fornecedores levou à redução dos valores. Mesmo assim, esperamos que no futuro o novo plano diretor da cidade adote também uma solução com concreto liso, mais econômica", concluiu o promotor Schmitt
Documentos de referência sobre a ação
Notificação enviada aos munícipes
Portaria da Prefeitura sobre Calçadas
Termo de Ajuste de Conduta