Se você já andou de ônibus alguma vez na vida com certeza já a conheceu. Rígida e implacável, a catraca é um objeto incômodo que se localiza entre você e o seu direito de ir e vir, de maneira quase sempre injusta.
Talvez você esteja pensando: uso ônibus todo dia e nem notava isso. Talvez não tenha problemas para se locomover, ou tem as medidas do corpo compatíveis com tal objeto. Ou mesmo, não costuma andar com crianças ou pacotes no dia a dia. Ou talvez nem use transporte público. De qualquer maneira, uma coisa é certa: quem usa, não gosta!
Não são poucos os relatos de contrangimento e dificuldades ao tentar usar as chamadas barreiras de acesso (ticketsgates), sobretudo nos ônibus. Em Chapecó (SC), uma senhora de 64 anos chegou a ficar 30 minutos presa na catraca de um ônibus. No Rio Grande do Sul uma empresa foi condenada a pagar R$3 mil reais a uma passageira obesa por tentar obrigá-la a passar em uma catraca mesmo não sendo possível. Em Mauá (SP), a cuidadora de idosos Rosimeire Bastos, de 42 anos, ficou presa em catraca de ônibus, e disse ter se sentido “um lixo” diante da situação.
Usuários do BRT do Recife (PE) reclamam de “catraca constrangedora”.
As catracas de ônibus são reguladoras de acesso e contagem de passageiros popularizadas no Brasil todo há décadas. Em várias cidades brasileiras a catraca está localizada na parte dianteira dos ônibus, e separa os passageiros que tem direito a algumas gratuidades (idosos, deficientes, etc) dos demais passageiros. Nos últimos anos, as catracas têm ficado cada vez mais altas e estreitas, criando problemas para a população que anda nos coletivos, trens, metrôs e diferentes tipos de locais em que o acesso precisa ser regulado por algum motivo.
Em 1999, o deputado Geraldo Magela propôs Projeto de Lei Nº 1060/1999, visando a proibir a instalação de catracas eletrônicas ou assemelhados nos veículos de transporte urbano, mas que foi arquivado em 2007 após longo trâmite na casa legislativa. A este projeto foram apensados outros quatro na Câmara dos Deputados (PL 2307/2000; PL 2867/2000; PL 2906/2000; PL 7186/2002 ), por tratarem do mesmo assunto. Em vários outros locais tentativas parecidas foram travadas pelo legislativo ou pela justiça (Maceió, São Paulo).
A função do transporte público é garantir o ir e vir das pessoas com dignidade e conforto, operacionalizando o direito ao transporte, mas também garantindo o acesso à cidade. No Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, é dever dos municípios garantir o serviço de transporte a população. Mas em 2015, graças a Emenda Constitucional Nº 90/2015, o transporte passou a ser considerado um direito social, incorporado ao artigo 5º da CF1988, e tornando-se parte das garantias mais essenciais que o Estado deve assegurar a seus indivíduos.
Em um mundo ideal não pode haver nenhum obstáculo entre você e seu direito. Essa é a noção de Cidadania cunhada pelo sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall, no início do século XX. Para Marshal, a cidadania é a condição daqueles são membros integrais de uma comunidade. Ela constitui o indivíduo como cidadão e não pode ser dissociada dele. Assim, o cidadão é aquele que, por natureza, tem direito a ter direitos.
A ideia de cidadania nasce no contexto de consolidação do Estado Moderno na Europa, fruto de uma construção história baseada em inúmeras lutas. Em seu livro, “Cidadania e Classe Social” (Citizenship and Social Class, 1950), Marshal detalha a noção de cidadania à partir da experiência inglesa de desenvolvimento do direito. Ela está relacionada à limitação do poder absoluto dos monarcas de direito divino, por um lado, e à a mudança de configuração do poder aristrocrático medieval (senhores feudais) frente às novas demandas da classe social em ascenção após revolução industrial (burguesia industrial).
A noção de cidadania é, portanto, uma afirmação do direito do cidadão frente ao Estado, e para Marshal é composta de três dimensões fundamentais: civil, política e social. Os direitos civis são aqueles necessários para a liberdade individual (liberdade de falar, pensar, manifestar sua fé, direito à propriedade e à justiça). Direitos políticos se referem a possibilidade de participar da vida política da sociedade (votar, ser votado, questionar e propor). E a dimensão social se refere ao conjunto de bens e serviços que o Estado deve ofertar para assegurar o bem-estar das pessoas (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, etc).
Cidadania, portanto, não se resume ao direito político, mas está profundamente ligada a noção de dignidade humana em sentido amplo. Os desenvolvimento dessas dimensões ao redor do mundo teve passos e sentidos muito distintos, não fazendo sentido falar em um caminho único a ser seguido. No Brasil, por exemplo, as condições históricas foram completamente diferentes e combinação dessas premissas são peculiares de cada percurso histórico. O que é importante pra esse texto é destacar a complexidade da noção de cidadania e a indissociabilidade dela do indivíduo. Em outras palavras, limitações ao exercício dos direitos são limitações da própria noção de cidadania.
Nesse contexto, as catracas de ônibus, do jeito que estamos acostumados a ver nos ônibus brasileiros são admissíveis apenas sob o ponto de vista do lucro. Sob o ponto de vista da cidadania, elas são completamente inadmissíveis. Se alinham, nesse sentido, ao argumento do geógrafo britânico David Harvey, de que os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direito. A lógica da catracas nos ônibus só é concebível em um sistema de transporte que permite a sobreposição do direito de alguns proprietários de empresas de ônibus sobre a cidadania do coletivo de pessoas da cidade. Nesse sentido, a defesa do lucro afronta a cidadania na medida em que restringe a acessibilidade, ignora os tamanhos, formatos e contextos dos corpos e dificulta o árbitro.
O que está implicado na relação entre o Estado e o setor privado para operacionalização do transporte público é que o serviço deve ser prestado com qualidade, dentro de parâmetros estabelecidos pelo próprio Estado, para dar conforto, segurança, acessibilidade e mobilidade aos cidadãs na cidade, mediante única e exclusivamente a contra-prestação de uma tarifa (que também deve ser regulada pelo Estado). Assim, o único requisito admissível para o acesso aos ônibus é o pagamento da tarifa, assim como o cumprimento dos critérios de elegibilidade para gratuidade de categorias específicas, como os idosos, os estudantes, deficientes. Qualquer outra exigência além dessa é abusiva.
Embora o pagamento da tarifa no sistema do transporte seja uma condição para seu funcionamento e sustentabilidade, o uso da catraca viola a noção de cidadania. A questão da evasão tarifária é um problema para várias cidades, mas o uso de barreiras físicas não necessariamente indicam redução. Estudos recentes indicam que a remoção de tais barreiras não leva a um aumento na evasão tarifária. A taxa de evasão em Berlim, por exemplo, está entre três e cinco por cento do total de viagens (sem uso de catracas), enquanto em Londres (onde o Oyster Card Contactless foi introduzido há mais de dez anos) fica em torno de seis por cento, apesar do uso de barreiras e catracas por Londres.
A garantia da contra-prestação para uso do transporte, pode, todavia, ser solucionada em diferentes caminhos. Diversas soluções disponíveis tem sido usadas ao redor do mundo para essa questão: além do uso de outro layouts para controle de acesso, um conjunto de possibilidades reduz a necessidade de controle do pagamento, como a compra antecipada de tickets por aplicativos; a utilização de tickets mensais, semanais e diários comprados previamente; o já vigente uso de cartões eletrônicos para pagamento do ticket; fiscalização e multa de pessoas que violarem normas de acesso, etc.
Em Berlim, na Alemanha, onde não há barreiras no acesso aos trens, existe a necessidade de “validação” do ticket em uma das máquinas disponíveis antes de embarcar. Quem por ventura se esquecer de realizar tal procedimento está sujeito à multa de 60 euros.
Em Oslo, na Noruega, as barreiras para passageiros de trem, bonde e ônibus foram removidas há cerca de uma década. O resultado foi um aumento na eficiência, pontualidade e satisfação do cliente - tudo isso mantendo o nível de evasão de tarifas estável. Ao proibir as catracas, as agências de transporte público da cidade enfatizaram a facilidade de acesso em primeiro lugar.
Na Europa, a chamada "prova de pagamento" funciona desde a década de 1960, na qual fiscais solicitam comprovante de pagamento de maneira aleatória a passageiros. Nos Estados Unidos, isso acontece desde os anos 1990. Autoridades em São Francisco, Califórnia, informam, inclusive, que viram uma diminuição na evasão tarifária. Eles também apontaram que um sistema sem barreiras é mais seguro, principalmente porque há menos chances de gargalos durante os horários de pico.
De maneira mais radical, a Estônia anunciou no ano passado a gratuidade em todos os meios de transporte público. Da mesma maneira, Luxemburgo passou a oferecer transporte público de gratuíto para resolver o problema dos congestionamentos e amenizar os efeitos do aquecimento global.
No sentido contrário, no Brasil temos facilitado o acesso ao transporte individual motorizado e dificultado a vida dos usuários de transporte público. As nossas catracas são, nesse sentido, uma solução às avessas. Estimular o transporte público e defender o uso das catracas são coisas completamente antagônicas, que nos colocam mais distantes de cidades melhores e cidadania plena.
*Rafael S. F. Sales é doutorando em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sociologia Política (GRESP/UFPB). Visiting Researcher Fellow no Institute of Development Institute/University of Sussex (Reino Unido). Sócio da OXY Pesquisa & Desenvolvimento Social.
** O autor agradece as contribuições de Betina Saruê e Emilayne Souto ao texto e também a provocação e estímulo do professor Rogério Medeiros.
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