Emoldurada em uma paisagem exuberante, a cidade do Rio de Janeiro ganhou, com justiça, a fama de lugar que convida à caminhada... O problema é que, com o passar dos anos - e das administrações -, a infraestrutura urbana não conseguiu acompanhar nem a qualidade dessa beleza natural, nem algum planejamento que possa ter sido feito em décadas passadas.
Cidade boa para caminhar? Nem tanto, concluem os avaliadores da Campanha Calçadas do Brasil 2019, do Mobilize Brasil. Desde o final do ano passado, até sua finalização agora, os colaboradores desta ação na capital fluminense percorreram inúmeros pontos nas zonas central, sul, norte e oeste, fizeram centenas de levantamentos e, com base no que viram, chegaram a um desenho mais realista - e grave - da situação atual do passeio público nos diferentes bairros e regiões da capital.
Uma das avaliadoras é a idealizadora do movimento Caminha Rio, Thatiana Murillo*, que nesse trabalho contou com o apoio de sua parceira, Sandra Talarico, que realizou vistorias na Barra da Tijuca. Também trabalharam nas avaliações no Rio de Janeiro o engenheiro e colaborador do Mobilize Guilherme Pfeffer, a historiadora e mestranda em planejamento urbano e regional Júlia Santiago, que pesquisa mobilidade urbana nas favelas, e a arquiteta Marília Hildebrand, da equipe do portal.
Segundo Thatiana, as calçadas do Rio em geral estão ruins: "O resultado é sofrível, por exemplo, se pensarmos em rotas completas, com ponto de partida de casa até o destino final do pedestre". Situação ainda mais alarmante é a dos cadeirantes e outras pessoas com deficiência, explica: "Aqueles que dependem do transporte público dificilmente encontrarão rampas, piso tátil ou outros equipamentos de mobilidade, por exemplo nas estações de trem da cidade."
Thatiana Murillo, uma das avaliadoras da Campanha no RJ. Foto: Arquivo pessoal
Um exemplo de calçada ruim é o entorno do Hospital Federal da Lagoa, no Jardim Botânico, local que a deixou bem mal impressionada: "Como pode a calçada de um hospital público estar toda arrebentada e não ter acessibilidade? Espera-se que sejam as mais acessíveis, afinal por ali passarão pessoas com mobilidade reduzida, em cadeiras de rodas, com vários tipos de dificuldade de locomoção", questiona.
Hospital da Lagoa, sem acessibilidade e com trechos destruídos. Foto: Thatiana Murillo
Para não ficar só no pior, Thatiana destaca também um bom exemplo de espaço que atendeu com louvor aos requisitos da Campanha: a calçada do Colégio Pedro II, na Tijuca: "Fiquei surpresa ao ver que uma obra ali realizada conseguiu atender a vários critérios constantes no formulário que trazíamos em mãos. Até totem [mapa de orientação] do projeto Rio a Pé existe diante dessa escola", elogia.
Colégio Pedro II: iluminação na faixa, e outros requisitos de mobilidade atendidos. Foto: Thatiana Murillo
É importante ressaltar que esta edição de 2019 do Calçadas do Brasil é voltada a calçadas que são de responsabilidade do poder público, lugares com grande circulação de pessoas como escolas, terminais de transportes, hospitais etc.
De tudo o que viu, Thatiana conclui: "Infelizmente as calçadas não são - e me parece que nunca foram - o foco da mobilidade dos governos. Nós vemos vários recapeamentos em várias regiões da cidade, abertura de vias para carros, reformas de viadutos, e tudo o mais ligado ao transporte motorizado. Mas nunca vemos uma operação tapa-buraco de largo alcance para as calçadas, ou mesmo suas reformas. São sempre pontos muito isolados, em ações como as que estão agora no programa da prefeitura Cuidar da Cidade", critica a diretora do Caminha Rio.
Soluções
Para ela, a primeira solução urbanística no Rio poderia se chamar “liberando a faixa livre”, diz. "Seria preciso promover uma grande operação de reparos e remoção de tudo aquilo que hoje é obstáculo na faixa livre. No caso de calçadas estreitas, com menos de um metro de largura e poste no meio, por exemplo, deveria se considerar a adoção da faixa verde (pintura no asfalto) para pedestres. Ou a remoção de uma faixa de carros onde possível. Sei que parece utopia, mas é a única forma de modificar esse panorama: tirar metros quadrados para os carros e dá-los a pedestres e ciclistas", enfatiza Thatiana.
Além disso, ela cita outras medidas necessárias, como melhorar a segurança viária dos entornos, ajustar a sinalização dando mais tempo de travessia nos sinais, placas indicativas, aumento no número de faixas e mais iluminação noturna.
Também os problemas da ordem pública fazem parte das preocupações dos cariocas: "A cidade se encheu de comércio ambulante, bares ocupam calçadas irregularmente, a população em situação de rua virou um problema crônico. Tem mais: a quantidade de lixo nas ruas é vergonhosa, há centenas de bueiros sem tampas e, a despeito do trabalho incansável da Comlurb [Companhia Municipal de Limpeza Urbana], nosso mobiliário está sendo depredado e furtado como nunca aconteceu antes", desabafa a ativista.
E prossegue: "Todas essas questões comprometem a mobilidade e não podem deixar de ser discutidas quando falamos de mobilidade ativa. Porque há uma 'disputa' pelo espaço ocupado nas calçadas e, daí, um risco enorme de acidentes". Por fim, ela lembra as centenas de árvores que caíram este ano em consequência das chuvas, e os conflitos recentes com os patinetes nas calçadas. "Realmente, está difícil ser um caminhante tranquilo no Rio", conclui.
Favelas
Situações que extrapolam o problema infraestrutural também marcaram o trabalho da historiadora Júlia Santiago ao avaliar para a Campanha as calçadas do Vidigal e Rocinha, na zona sul. Um terço do território do Rio de Janeiro é formado por favelas "de composição diversa e crescimento não planejado", ela explica, destacando que "avaliar prédios públicos situados nas favelas é também entender que esse território faz parte da cidade."
Júlia Santiago, que avaliou caminhos no Vidigal e Rocinha. Foto: Arquivo pessoal
Júlia conta que nesses locais há um uso misto do espaço, além de grande índice de empreendedorismo comercial e cultural, que faz com que a circulação de pedestres seja enorme: "As construções são desenvolvidas segundo as demandas dos moradores, e as calçadas também acompanham limites e possibilidades de terreno e espaço. Os prédios públicos, por sua vez, também são incorporados dentro da viabilidade local, e muitas vezes não seguem os padrões regulamentados. Logo percebi que era preciso conhecer e entender as dinâmicas desses territórios e, na medida do possível, pensar em soluções que contemplassem o conforto e a segurança do pedestre que utiliza os diferentes serviços dentro da favela", destaca.
"Reconhecer essa diversidade/discrepância de oportunidades e infraestrutura nessas áreas, descrita no relato de Júlia, tem o poder de influir visibilizar diretamente a qualidade desses passeios", acrescenta a arquiteta Marília Hildebrand, do Mobilize.
Por isso nesta Campanha, justifica, as pessoas envolvidas nas avaliações buscaram "priorizar a diversidade dos locais, não somente elegendo obras vultosas e reconhecidas pelo seu legado recente, como o Porto Maravilha, mas também equipamentos públicos que atravessam o cotidiano do carioca como obstáculos em seus deslocamentos diários, incluindo aí calçadas em todas as zonas da cidade e também os espaços das favelas".
Marília notou que, de modo geral, as obras em localidades de maior visibilidade turística "acabam por capturar a maior parte dos recursos; e este dinheiro provê para determinadas áreas um calçamento de boa qualidade, dentro 'dos padrões europeus', em detrimento da baixa qualidade das calçadas em regiões que são determinantes para a mobilidade metropolitana, como na Central do Brasil, onde o fluxo diário de pedestres é intenso", destaca.
Central do Brasil: fluxo intenso de pedestres e baixa qualidade dos passeios. Foto: Marília Hildebrand
*Thatiana Murillo, do Caminha Rio, é professora de espanhol do ensino fundamental, graduada em Comunicação e História e com pós-graduação em práticas docentes
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