Diagnosticada com a chamada "doença dos ossos de vidro", Jéssica Pacheco arrisca-se a sofrer fraturas quando circula pela cidade do Recife, onde vive e onde estuda arquitetura e urbanismo. Ativista pela acessibilidade universal nas cidades, Jessica assumiu sozinha a tarefa de realizar as avaliações para a Campanha Calçadas do Brasil lá na capital pernambucana. Nesta entrevista ela conta sua experiência ao participar da campanha e oferece um breve depoimento pessoal sobre as dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência no Brasil.
Como é o caminho para uma pessoa em cadeira de rodas pela cidade de Recife?
Recife tem um caminhar ruim/péssimo na maior parte do seu território, como vemos nas notícias e em outros dados e apontamentos. Durante as avaliações da pesquisa, fui questionada nas ruas sobre o que eu estava fazendo, e, assim que informava, muitas das respostas que recebia demonstravam a insatisfação e a concordância das pessoas sobre a urgência de melhorias. Isso, ainda que este dever pareça ser entendido e apresentado pela população como um problema de governo, dos órgãos públicos. A relação usuário e espaço público tem maior apropriação apenas em alguns poucos endereços onde a maior parte dos parâmetros atende ao ideal de uso. Já onde não é assim, bairros, ruas e calçadas são totalmente negligenciados, e de um grande ponto em potencial passam a ser vistos com descaso. A cidade e seus equipamentos públicos se encontram neste limiar de barreiras, interrupções, falta de acessos, não integração, exclusão, deixando o urbano sobrepor ao humano e trazendo todas as dificuldades intrínsecas dessa escolha.
Há algum programa para a melhoria de calçadas, sinalização e equipamentos de apoio para a mobilidade a pé?
A prefeitura do Recife, em conjunto com a Autarquia de Urbanização do Recife (URB), promove desde 2017 um projeto chamado Calçada Legal, que visa privilegiar o caminhar requalificando calçadas públicas da cidade, trazendo mais acessibilidade, mobilidade e conforto para os pedestres. Inclui-se também a preservação dos passeios históricos e o paisagismo. Atualmente já há obras iniciadas em quinze ruas, com a projeção de beneficiar mais de 100 ruas compreendidas nas RPAs (Regiões Político Administrativas). A previsão de finalização do projeto é em cinco meses, com investimentos de aproximadamente R$ 300 mil. Além disso, de dezembro de 2018 para cá, está sendo revisto o Plano Diretor do Recife que, entre as muitas propostas em conjunto com a Política Municipal de Mobilidade Urbana e o Plano de Mobilidade Urbana, traz estudos de diretrizes sobre a mobilidade. O pontos norteadores de melhoria nesse programa são: promoção da segurança das pessoas, em especial pedestres e ciclistas; melhoria da qualidade dos sistemas de mobilidade urbana; transformação para a mobilidade urbana sustentável; modernização da gestão da mobilidade urbana; aumento da resiliência dos sistemas de mobilidade urbana.
Por que você resolveu "adotar" a Campanha Calçadas do Brasil?
Durante anos de minha vida, me vendo sem opções, fui muito reclusa. Mas algumas mudanças e escolhas me fizeram querer viver a rua, e, por gostar/estar participando de atividades, me ocupar e assim sair do imaginário de que uma PcD [pessoa com deficiência] não existe. Isso, além do fato de que o espaço urbano é atrativo para mim, o que me leva a estar sempre pelas ruas. Então, essa relação naturalmente me faz buscar sempre mais, para entender e trabalhar melhor o tema. A calçada, ainda mais para mim, é de extrema importância para que esse trato continue a existir. Mas sinto que as pessoas passam por ela como se não a vissem, como se fosse apenas o lugar onde seus pés pisam. Por isso não tratam dessa questão. Ver as coisas assim seria como negar o meu direito de Ser e projetar a injustiça sócio-espacial. Enfim, a campanha surge para mim como mais um subsídio de entendimento e poder de fala, e não poderia ficar sem me envolver nessa ação.
Como selecionou os locais/trajetos para esta avaliação no Recife?
No Recife, a divisão por zoneamento compreende seis RPAs (Regiões Político Administrativas). Na minha escolha, como base de estudo, destaquei principalmente a RPA 1, onde está a centralidade mais importante da cidade e onde há o maior fluxo de pessoas. Além dela, dei representação de duas ou três avaliações em cada uma das outras zonas, de modo a abranger toda a cidade. E priorizei os vários tipos de equipamentos públicos, fazendo referência de cada uso para compor a pesquisa.
Exemplo de dificuldade: calçada ocupada por ambulantes
Você enfrentou muitas dificuldades ao se deslocar para o trabalho de campo da Campanha?
Essa é a pergunta mais simples de ser respondida: Todas! Enfrentei todas as dificuldades... Sem a ajuda de outras pessoas, eu nunca teria conseguido andar pela cidade sem ser barrada por algum problema. Em muitas das fotos que tirei dá para ver que o enquadramento é o de quem está fora da calçada, porque, ou não conseguia subir com a cadeira, ou o caminho era muito ruim.
Às vezes, eu até conseguia subir no passeio, mas mesmo assim para caminhar me deparava com inúmeros obstáculos ou espaços mínimos de passagem, e mais uma vez era necessário recorrer à ajuda de outros para conseguir passar. Isso sem falar da falta de rampas adequadas, de acessos etc.
Infelizmente, a cidade é assim: muitos entroncamentos e barreiras no caminho do cadeirante. Por isso, como produto final destas avaliações, tenho a ideia de criar um banco de informações e diagnósticos, que traga maior clareza sobre este que é um ponto importante de mobilidade e da relação das pessoas com a cidade do Recife, e que aponte as fragilidades atuais para posteriormente podermos pensar seriamente em melhorias.
Como cadeirante, há alguma outra questão que julgue pertinente?
Calçadas devem ser o foco prioritário num planejamento seja da gestão ou da equipe projetista, fazendo o que lhes cabe e destinando sua atenção e consciência ao desafio de poder dar o acesso a todos. Lembro o significado do verbo Acessar: "Ter passagem, permissão; entrar: acessar um território, uma área..." Precisamos pensar que a incompreesão desse conceito promove desigualdades sociais a tal ponto que as condições não me permitem chegar aos locais e nem ao menos o direito de querer... Aqui no Recife, com reflexo no Brasil inteiro, vivemos um atraso histórico de erros, eu trago a minha visão mais a nível do chão, relação essa que vivo diariamente. Como estudante de arquitetura e urbanismo, participar dessa parceria com o Mobilize me traz alegria e gratidão e torna a minha formação ainda mais rica para a atividade de Universalização de Acesso, que pretendo desenvolver profissionalmente.
Um relato pessoal de Jessica Pacheco
"Tenho uma doença genética rara, a Osteogênese Imperfeita, conhecida popularmente como Ossos de Vidro. Isso significa que meus ossos são extremamente frágeis e que ao menor impacto posso ter micro ou grandes fraturas espontâneas. Isso resulta em muitas limitações, deformidades e dores diariamente.
Não tinha expectativas de chegar a onde estou agora e foram muitos anos até que uma oportunidade mudasse minha vida e visão de mundo. Ganhei minha atual cadeira motorizada e com ela uma relativa liberdade! No ano passado entrei na UFPE, no curso de Arquitetura e Urbanismo, e a escolha foi ao encontro com aquilo que sou, que vivencio nas ruas de minha cidade. Barreiras nas calçadas e no transporte público que me negam o direito constitucional de ir e vir. Aliás, sugiro que façam também uma avaliação sobreo transporte nas cidades brasileiras!
Sem dados técnicos, contando apenas com minha experiência e das pessoas que trabalham pela acessibilidade, creio que 95% calçadas da cidade são ruins ou péssimas. Na maioria são "calçadas privatizadas", conforme prevê a Lei 16.292 que desde 1997 isenta o poder público de ser responsável pelos passeios públicos do Recife.
Chego a considerar - estou brincando, é claro - que não há muita utilidade da calçada para as pessoas em cadeira de rodas nesta cidade: em praticamente todos os pontos que fui avaliar (e o que é normal, em todos os lugares que ando na cidade) só posso ficar na pista, seja rua ou avenida junto aos carros e ônibus, dando a convencer a terceiros que está tudo bem e que não há perigo algum. E isso simplesmente porque não há uma simples rampa para a calçada... Assim, agradeço à minha assistente, Telma, que me ajudou em algumas tarefas das avaliações.
Telma, a assistente de Jessica nas avaliações da campanha
Aspiro verdadeiramente a um desenho universal de mundo e desejo que ninguém deixe de participar da vida porque existe uma barreira, seja ela qual for. Agradeço ao Mobilize pela oportunidade de poder integrar a campanha, e me disponho a participar para contribuir sempre que necessário."
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