No mês em que Cuiabá comemora seus 300 anos de fundação, trago as seguintes perguntas: De quem é a cidade? A quem ela pertence? Quem deve usufruí-la?
Ao andar pelo centro da capital deparo com placas de “aluga-se” ou “vende-se” anunciando a morte lenta do comércio local. Algo semelhante desperta nossa atenção ao tirarmos os olhos da pista e focarmos nos estabelecimentos comerciais ao longo da avenida Historiador Rubens de Mendonça (a avenida do CPA). Sem dúvida, o cenário de instabilidade político-econômica empresta sua parcela de contribuição, mas há um outro elemento que acelera a decadência deste comércio: na rua sobra carro e na calçada falta gente.
Comércio de rua, pelo próprio nome, só tem movimento quando há gente passando em frente, e não apenas carros. Ruas como a Pedro Celestino, Campo Grande, 13 de Junho, Voluntários da Pátria e Cândido Mariano têm espaço para automóvel em circulação e estacionado; porém, não provê calçadas com larguras suficientes para acomodar um poste e uma pessoa ao mesmo tempo. Não há árvores e as únicas sombras na região são produzidas pelos próprios prédios, no início da manhã ou no final da trade.
Um carro estacionado em frente à loja não se traduz em fluxo de pessoas e, consequentemente, não movimenta a economia. Pelo contrário, resulta em uma área aproximada de 6,5 m2 ocupada geralmente por uma única pessoa (o motorista) e que mesmo assim não permanece no local.
O comércio morre pela falta de gente circulando, em detrimento da oferta das vagas de estacionamento gratuito na rua.
População/frota
No ano 2000, Cuiabá tinha 483.346 habitantes para uma frota de 120.658 veículos. Passados 18 anos, a população estimada pelo IBGE é de 607.153 habitantes para uma frota de 418.760 veículos, segundo dados do Detran/MT. Ou seja, há 18 anos tínhamos a proporção de um veículo para cada quatro habitantes; e hoje alcançamos o índice de dois veículos para cada três habitantes. Nesse período, a população cuiabana cresceu 25,6%, enquanto a frota aumentou 247%. A prosseguir neste ritmo, fica impossível prover sistema viário que suporte essa variação.
Por falar em sistema viário, a expansão da malha estrutural (aquela constituída pelas vias de alta capacidade interligando diferentes regiões da macrozona urbana) foi bem menor na cidade nesse período. Em 18 anos, limitou-se à construção da Avenida das Torres e, nos demais casos, foram alargamentos e duplicação de vias existentes, como Archimedes Pereira Lima, República do Líbano, Juliano Costa Marques, MT 251 e MT 010 (ainda inconclusa), Dante de Oliveira (apenas um trecho) e Avenida Antártica, entre outras.
No mais, foram tratamentos pontuais como aplicação de sentido único, eliminação de estacionamentos ao longo da via, implementação de direitas livres e as ditas “obras da Copa”, dentre as quais destacam-se as trincheiras e viadutos na Avenida Miguel Sutil. Ações pontuais que em pouco tempo sucumbem ao elevado crescimento da frota.
Transporte público
Para o transporte coletivo ficamos no “mais do mesmo”, exceto pelos 10,7 km de faixas quase exclusivas que ajudaram no desempenho da frota, pela entrega recente das estações Alencastro e Ipiranga no centro, pela instalação de alguns poucos novos abrigos e pelo aumento pouco perceptível de frota com ar-condicionado.
Enquanto isso, do outro lado da Prainha, na histórica Praça Bispo Dom José, usuários do transporte público se confundem em meio a vendedores de água, churrasquinho, cachorro quente, churros etc. Na 13 de Junho, a rua “empresta” suas calçadas para os comerciantes exporem seus produtos em meio à disputa de espaço com os ambulantes. E tudo acontece com anuência da (des)ordem pública.
Nas ações para pedestres e ciclistas reina o silêncio!!!
Na cidade sem um Plano Diretor de Mobilidade Urbana, a ausência de políticas públicas bem definidas a curto, médio e longo prazos dá lugar a soluções pautadas no desconhecimento sobre o tema e baseadas apenas da experiência sensorial. E que, via de regra, se convertem em ações que andam na contramão da mobilidade sustentável e jogam Cuiabá ainda mais para o abismo.
Na Cuiabá dos 300 anos planta-se, não árvores, mas vagas de estacionamento nos canteiros centrais, para atender à vontade dos estabelecimentos privados. Isso faz da via pública uma extensão do seu comércio, sem recolher nenhum centavo a mais no IPTU.
Cito dois casos recentes: a Avenida Mato Grosso, no centro, e a Avenida das Palmeiras, no bairro Jardim Imperial, onde o que restou de canteiro tem largura suficiente para acomodar uma palmeira e nada mais. Não me causará espanto se em poucos dias tivermos praças sendo reduzidas para dar lugar aos estacionamentos em áreas mais nobres da cidade.
No quesito mobilidade urbana, a mesma gestão que prega pela humanização peca ao atuar demasiadamente em favor da máquina quando cobre os buracos no leito carroçável, porém ignora a remoção das barreiras (obstáculos, buracos, desníveis, mato, lixo e carros) que limitam o caminhar nas calçadas; destrói canteiros transformando-os em estacionamentos e não amplia as calçadas a fim de prover o plantio de árvores que futuramente tragam sombra e amenizem o calor escaldante dos meses de agosto a novembro; aplica 15 milhões de reais em inteligência artificial nos semáforos para reduzir os congestionamentos, mas ignora a programação de tempos de travessias dedicados aos pedestres nos cruzamentos.
Investir na expansão da infraestrutura viária é uma necessidade para a capital nos próximos anos, sabemos, mas apenas isso não será suficiente para tirá-la do congestionamento e devolver mobilidade aos seus mais de 600 mil habitantes.
A Cuiabá dos 300 anos ainda maltrata seu pedestre e aqueles que fazem uso do transporte coletivo, os que não conseguem se fazer ouvir à mesma altura dos que reclamam quando o trânsito não anda ou quando não acham uma vaga para estacionar onde desejam.
Mas há esperanças!!! Emprestei do Gabriel o título deste artigo. Um garoto de 14 anos pertencente à classe média, usuário do transporte coletivo, e que nesta semana satirizou em sua rede social a jornada de atravessar a Avenida do CPA, mostrando calçadas destruídas e o mau funcionamento do foco verde do pedestre com o boneco “apressado”.
O vídeo de 10 segundos mostra a inversão dos valores, fazendo notar que há muito desequilíbrio na oferta do espaço público entre os motorizados e os não motorizados. As vozes silenciosas das calçadas começam a se manifestar e, quem sabe, bem antes dos 600 anos, possamos ver pedestres consumidores de volta às ruas, fomentando a economia do centro e protegidos do sol escaldante num dia da primavera cuiabana.
Afinal de contas, a quem pertence a cidade?
*Rafael Detoni é arquiteto urbanista e consultor em Transportes. É mestre em Engenharia de Transportes pela EESC/USP
Leia também:
Cuiabá daqui a cem anos
Nova ciclovia em Cuiabá. Só falta a sombra...
Campanha Calçadas do Brasil começa em Cuiabá (MT)
Lojistas pedem melhorias no transporte público de Cuiabá
Mais de 70% dos acidentes de trânsito em Cuiabá envolvem motociclistas