A capital mato-grossense completa hoje (8) trezentos anos de fundação e como todas as cidades brasileiras enfrenta sérios desafios pelo rápido crescimento que sofreu nas últimas décadas. Neste texto, redigido há dois anos, quando a cidade completava 298 anos, a professora Doriane Azevedo, da Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)), lembra que a cidade de hoje é apenas o resultado de uma série de ações desarticuladas do passado. E defende um planejamento ambicioso, de longo prazo, para uma futura Cuiabá mais humana e inclusiva
Sempre que me indagam qual a “Cuiabá 300 anos” dos meus sonhos fica claro que a pergunta refere-se apenas ao ano de 2019. Um dos nossos grandes equívocos enquanto sociedade é justamente esse hábito de pensar e agir pequeno, de forma imediatista, em curto prazo, sem planejamento. Não se constrói uma verdadeira cidade desta forma.
Cuiabá tem muitas qualidades, mas insistimos em agudizar os defeitos e criar problemas de toda ordem. E de que forma agimos - e aceitamos que nossos gestores também o façam: se faltam espaços públicos de lazer e recreação, rapidamente criam-se “parques” e “orlas decoradas”, mas sem enfrentar os novos problemas gerados por estas obras: supervalorização imobiliária, segregação socioeconômica e falsa preservação ambiental, na presença de córregos e lagoas usadas como “redes de esgotamento sanitário”. E assim vamos acumulando “Parques das Águas” e “Orlas do Porto, mas esquecemos a via real das pessoas que vivem e trabalham no Porto e no Centro Antigo da cidade.
Orla no Porto, às margens do rio Cuiabá, inaugurado no final de 2016 Foto: Felipe Mascarenhas
Temos problemas de mobilidade, falamos muito de condições melhores para pedestres, mas será que lembramos que todos somos pedestres? E quando nos referimos aos ciclistas, estamos pensando em quem? No ciclista “paramentado” com seus equipamentos de proteção e sua “bike” cheia de recursos, ou no “senhorzinho” que pedala a antiga “Caloi”, contando com sua força para vencer seu percurso árido e inseguro? Alguém fala deste ciclista? Aliás, alguém o vê?
Todos queremos transporte público de qualidade, mas o que apoiamos e comemoramos é a construção de viadutos, trincheiras, mais e mais pistas de rolamento, com mais espaço para os automóveis, mesmo que seja para estacioná-los sobre as calçadas. E tome mais poluição, mais e mais acidentes, o que resulta em um dia-a-dia perigoso para todos e um futuro alijado para jovens e adultos.
Temos ainda a obra inacabada do Veículo Leve sobre Trilhos, o VLT Cuiabá-Várzea Grande, projeto que somente considerou o traçado, mas desprezou os impactos urbanísticos que o novo sistema de transporte terá na vida e nos fluxos da região metropolitana. Infelizmente é mais uma entre várias intervenções urbanísticas pontuais e desarticuladas e distantes de Política de Planejamento em todas as dimensões.
Obras do VLT Cuiabá-Várzea Grande Foto: Arquivo Mobilize
É esta a Cuiabá que queremos para os próximos 100 anos, até 2119?
Políticas de planejamento que sejam realmente implementadas exigem uma mudança de postura dos prefeitos e governadores. Não podemos mais pensar apenas na gestão do governador fulano ou do prefeito cicrano, dos partidos X ou Y. Gestões e gestores passam, mas a cidade permanece. Precisamos de planos e propostas de longo prazo, cuja continuidade seja controlada pelos eleitores, pelos cidadãos cuiabanos.
Meu sonho, que acredito seja de muitos, é de uma mudança idealizada e materializada de forma contínua, pelo longo prazo que se fizer necessário, mesmo que tome toda a nossa existência. Sonho cotidianamente com uma Cuiabá que não queira apenas bater palmas em inaugurações de obras, tal como eventos sociais.
Para os próximos cem anos (e muitos outros) espero contribuir com a discussão e planejamento de um conjunto de ações integradas para construir e consolidar uma Cuiabá inclusiva, de tal forma que todos tenham acesso a todos os lugares da cidade. Um município que se reconheça e se integre em sua região metropolitana, seu estado, no país.
Lanço este desafio para que todos possamos sair do pesadelo presente e construir a melhor realidade possível a partir destes 300 anos de Cuiabá.
*Doriane Azevedo é doutora em Planejamento Urbano e Regional pela FAU/USP, professorora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e líder do Grupo de Pesquisa e Extensão Estudos de Planejamento Urbano e Regional (Épura/UFMT)
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