Cerca de um mês atrás, Uirá Lourenço, do blog Brasília para Pessoas, publicou um longo texto em que criticava a "flexibilização" das faixas de ônibus do Distrito Federal, medida contraditória com a Política Nacional de Mobilidade Urbana e contrária à todas as políticas públicas adotadas pelas cidades mais avançadas do mundo. Neste final de semana, o jornal Metrópoles abordou o assunto, ouviu Uirá, passageiros e motoristas dos ônibus, e mostrou a enxurrada de projetos de lei que pretendem reduzir a eficiência das faixas exclusivas no entorno da Capital Federal:
Em Brasília, quando o assunto é mobilidade urbana, o discurso do governador Rodrigo Rollemberg (PSB) e dos deputados distritais é alinhado: na teoria, eles defendem a implementação de políticas públicas que incentivem a população a deixar o carro em casa e dar preferência ao transporte coletivo. No entanto, na prática, Palácio do Buriti e Câmara Legislativa (CLDF) adotam medidas que punem quem se locomove de ônibus.
Em maio, o Governo do Distrito Federal (GDF) retirou quase 5 km de faixas exclusivas da DF-001, no trecho entre o viaduto que dá acesso a Samambaia e próximo do Shopping Riacho Mall, no Riacho Fundo. A alegação: “Dar mais fluidez ao trânsito”. A via é uma extensão da Estrada Parque Núcleo Bandeirante, a EPNB. Quem não gostou nada da mudança foram os cerca de 47 mil passageiros que passam diariamente por ali. Com a supressão do corredor privativo para coletivos, táxis, viaturas policiais, de socorro e escolares, quem depende de ônibus perde preciosos 20 ou 30 minutos para chegar em casa.
O motorista de ônibus Adiel da Silva Costa, 44 anos (foto em destaque), diz não ter entendido os critérios do DER ao extinguir parte da faixa exclusiva da EPNB. “Pelo que a gente ouvia, diziam que iriam aumentar as faixas exclusivas na cidade, não diminuir. Realmente é algo incompreensível”, opina.
“Parece pouco, mas para quem trabalhou o dia todo faz uma diferença enorme chegar meia hora mais cedo. Quem toma uma atitude dessas [retirar as faixas exclusivas] nunca precisou de ônibus na vida. É uma covardia”, reclama o aeroviário Alexandre Ribeiro, 45 anos. Todos os dias ele pega a mesma linha para seguir de casa (no Recanto das Emas) para o trabalho (no Aeroporto Internacional de Brasília).
Alexandre Ribeiro passou a chegar mais tarde após retirada de 5km de faixa exclusiva no DF Foto: J.P. Rodrigues/Metrópoles
O coro dos insatisfeitos com a extinção de parte da área reservada é engrossado por motoristas de ônibus, como Samuel Barbosa dos Santos, 32 anos, o qual trabalha há cinco na linha que transporta Alexandre Ribeiro. A reportagem do Metrópoles pegou uma carona com ele na manhã dessa quarta-feira (14/11) e constatou a piora para condutores de coletivos e passageiros depois de o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) liberar o trecho para carros de passeio.
“Depois que retiraram esse pedaço, que era muito importante para a fluidez dos ônibus, eu chegava ao destino final meia hora antes. Foi uma perda de qualidade para os passageiros e para nós, motoristas, que passamos mais tempo dentro do veículo”, explica Samuel.
O motorista Samuel Barbosa: corridas mais demoradas Foto: J.P. Rodrigues/Metrópoles
Distritais querem “faixas flex”
Não é somente o Executivo local que adotou medidas desagradáveis aos usuários de transporte público. Na Câmara Legislativa tramitam 18 projetos de lei (PLs) que tornam mais flexível o uso dos 50 quilômetros de faixas exclusivas na EPNB, Estrada Parque Taguatinga (EPTG), W3 Sul, W3 Norte e Setor Policial Sul.
Só de autoria do deputado Juarezão (PSB) são cinco PLs. Se depender do distrital, carros-fortes, guinchos, mototáxis e veículos de escolta armada poderão trafegar nos corredores. Já Celina Leão (PP) – a qual representará o DF na Câmara Federal a partir de 2019 – quer a liberação de todas as faixas até o GDF reconstruir o viaduto que desabou no Eixão Sul. Julio Cesar (PRB) – distrital também eleito federal – apresentou um texto no qual defende o tráfego de carros da imprensa nas faixas de ônibus, enquanto Bispo Renato Andrade (PR) e Telma Rufino (Pros) entendem que o espaço deve ser reservado também a pessoas com deficiência. Por sua vez, Cristiano Araújo (PSD) quer legitimar que veículos de passeio com três pessoas ou mais possam trafegar nos espaços sem serem multados.
Contradição
O servidor público e criador do blog Brasília para Pessoas – que se dedica à defesa de um trânsito com menos veículos –, Uirá Felipe Lourenço, 40 anos, critica a contradição das autoridades responsáveis por melhorar a mobilidade urbana. “Fortaleza saiu de 0 para 100 quilômetros de faixas exclusivas em quatro anos. A gente percebe que, em Brasília, falta vontade política”, diz Uirá, responsável por fazer o levantamento dos PLs na CLDF.
Uirá não tem carro por opção. Costuma ir de bicicleta a quase todos os seus compromissos. Na avaliação dele, há outros pontos da cidade que mereceriam atenção do poder público. “Aqui, no Eixo Monumental, [esse problema] é emblemático. Estamos no centro das decisões políticas do país e não temos corredor exclusivo de ônibus, as calçadas estão depredadas e a ciclovia é interrompida em pontos perigosos”, diz o servidor, enquanto apontava para um ciclista tentando atravessar às pressas uma das vias do local.
O servidor e criador do Blog Brasília para Pessoas, Uirá Lourenço: ele reclama da falta de corredores exclusivos para ônibus e do estado de conservação das ciclovias da cidade Foto: J.P. Rodrigues/Metrópoles
O presidente da Associação dos Usuários de Transporte Público do Distrito Federal (Autrac-DF), Vidal Guerra, critica o tratamento ofertado pelo governo àqueles que dependem de ônibus. "O discurso do governador e desses deputados é extremamente incoerente. Quando você retira as faixas, está punindo o trabalhador ainda mais. Quem tem carro fica no engarrafamento com ar condicionado e ouvindo sua música sentado. Quem está no congestionamento, no ônibus, se sente numa lata de sardinha. Uma indignidade", completa Vidal Guerra, presidente da Autrac-DF.
Falta de estudos
Especialistas ouvidos pelo Metrópoles criticaram as ações do governo a fim de suprimir os acessos privativos. O expert em transporte Flávio Dias questiona se o Departamento de Estradas de Rodagem fez alguma análise tanto para implementar quanto para reduzir a extensão da faixa exclusiva da EPNB. “As pessoas tiveram uma ideia, mas executaram de forma atabalhoada. Teve estudo para criar e depois para retirar a faixa? Se tem, ele deve ser tornado público. Esse vai e volta é uma brincadeira com a coisa pública e custa muito dinheiro. Não se pode criar um sistema que não funciona.”
O diretor nacional do Instituto Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte (MDT), Nazareno Stanislau Affonso, coordenou uma pesquisa que comprova a eficiência da faixa exclusiva na EPNB. Segundo ele, o DER resolveu extinguir quase metade do instrumento baseando-se em argumentos rasos. “Nós comprovamos que, nos horários de pico, os coletivos percorriam a EPNB em quase uma hora a menos do que os carros. O efeito é fantástico. Por que resolveram acabar com essa vantagem para quem escolhe o transporte público para se locomover?”, questiona Stanislau, que foi secretário da área no governo de Cristovam Buarque e um dos coordenadores do programa Paz no Trânsito.
Projetos malfeitos
No DF, cinco localidades contam com faixas exclusivas para ônibus, táxis e escolares: EPNB (20 km); EPTG (13 km); W3 Sul (7,2 km); W3 Norte (7,2 km); e Setor Policial (2,6 km). A promessa era de que a medida seria suficiente para convencer cidadãos a trocarem o carro, mas a falta de investimento no sistema não proporcionou tal substituição.
Além disso, projetos malfeitos impediram que as faixas de fato melhorassem a mobilidade na cidade. Em 2017, o Metrópoles mostrou um estudo publicado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) sobre o planejamento equivocado das faixas exclusivas da W3 Sul. De acordo com a análise, elas seriam mais eficazes se estivessem no lado esquerdo da via.
Segundo o estudo, como a W3 Sul tem muitos sinais, cruzamentos e paradas de ônibus, os veículos demoram para percorrer os 13 km de extensão da avenida (considerando-se os dois sentidos, são 26 km). A existência da faixa exclusiva à direita dos motoristas torna a viagem ainda mais lenta, de acordo com o levantamento.
O caso mais clássico envolvendo desperdício de recursos públicos com a construção de corredores privativos pode ser visto na EPTG. A estrada que liga o Plano Piloto a Taguatinga foi ampliada em 2010 ao custo de R$ 244,7 milhões. Os 12,7 km de faixas restritivas foram feitos do lado esquerdo da via, impedindo que ônibus convencionais – com portas do lado direito – fizessem paradas nos pontos erguidos.
Na EPTG, poucos ônibus circulam pela faixa exclusiva, que é invadida por carros constantemente Foto: Michel Melo / Metrópoles
O então governador do DF, José Roberto Arruda, responsável pela obra, prometeu fazer licitação para aquisição de coletivos com portas dos dois lados, mas foi abatido pela Operação Caixa de Pandora antes de terminar a gestão, e até hoje o espaço permanece subutilizado. De acordo com o Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans), apenas 30% das linhas que passam pela EPTG utilizam a faixa exclusiva no sistema expresso. Ou seja, não fazem paradas.
Por e-mail, a assessoria de imprensa do DER respondeu que não há previsão de criar outras faixas exclusivas no DF, mas não explicou por quais razões os 5km foram suprimidos da DF-001.
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