Carro ainda seduz, mas na cidade é um ser desajeitado

No Salão do Automóvel e em Interlagos, carros que andam a 300 km/hora. No resto da cidade, todo mundo parado no congestionamento de sempre, diz Mauro Callari no Estadão

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Fonte: Blog Caminhadas Urbanas / Estadão  |  Autor: Mauro Calliari  |  Postado em: 13 de novembro de 2018

James Bond e um automóvel Ston-Martin

James Bond (Sean Connery) e um Aston Martin DB 5, de 1964

créditos: AstonMartin.com

O texto de Mauro Calliari foi publicado originalmente no blog Caminhadas Urbanas, no site do Estadão, depois de um final de semana repleto de carros e aficionados na capital paulista. É um termômetro deste momento da mobilidade urbana no Brasil, talvez em toda a América Latina.


O carro é um objeto de desejo e paixão. Nas ruas da cidade, porém, transforma-se num transporte desajeitado, poluidor e ineficiente.

 

Neste fim de semana, São Paulo hospedava o Salão do Automóvel e a corrida de Fórmula 1 em Interlagos. O Salão deve ter mais de 700 mil visitantes, transformando-o no terceiro mais visitado do mundo. Na corrida, mesmo sem pilotos brasileiros, apareceram 150 mil pessoas. Todos interessados em velocidade, design e tecnologia.

 

Foto: Mauro Calliari

 

O glamour do Salão e do autódromo, porém, contrasta vivamente com as ruas de acesso. Lá, filas enormes são formadas para entrar nos estacionamentos. No domingo, entre a corrida,  o salão e o ENEM, sobrou mais uma vez para o trânsito e a cidade ficou congestionada. Os mesmos carros que povoam nosso inconsciente coletivo entopem as ruas da cidade.

 


Foto: Mauro Calliari


O que explica que o carro seja um objeto de desejo tão importante no nosso imaginário e ao mesmo tempo tão ineficiente como solução de mobilidade na cidade?


O carro como objeto de desejo
Havia anos que não ia ao Salão do Automóvel. Tenho participado de debates e conversas sobre transporte público, compartilhamento, caminhadas, e estava quase despreparado para as cenas de paixão explícita com os automóveis:

Foto: Mauro Calliari


As pessoas encostam com reverência nos carros expostos sob as luzes fortíssimas. A Ferrari vermelha com a moça de roupa justa sob holofotes atrai multidões. A McClaren Senna, preço próximo dos R$ 10 milhões, ganha selfies entusiasmados.  Um grupo de amigos se diverte trocando o pneu de um carro. Outros fazem fila para o test-drive da caminhonete que sobe uma rampa.

 

Foto: Mauro Calliari


É visível a paixão pelo carro. Pesquisa publicada recentemente mostrou que quase 15% dos brasileiros se dizem apaixonadas por carro. São aquelas pessoas que conversam sobre novos lançamentos, acompanham testes, visitam o Salão do Automóvel e assistem a corridas.

Os filmes continuam colocando os carros nas cenas de ação e não é impossível que venhamos a assistir ao Velozes e Furiosos número 23. Os valets dos restaurantes ainda deixam os carros mais caros bem na porta de seus estabelecimentos. Empresas ainda dão carros aos seus executivos mais graduados.

 

Mas algumas coisas estão mudando muito rapidamente. A primeira é a constatação de que alguns atributos do automóvel deixam de fazer sentido, quando o número de carros ultrapassa o limite da fluidez possível.

 

A velocidade possível não é a velocidade real
A velocidade é inerente ao automóvel. Desde que Nikolas August Otto inventou o motor a 4 tempos, o carro foi ficando cada vez mais veloz, mais perigoso, até que as grandes cidades descobriram que velocidades altas são incompatíveis com a vida urbana.

 

Na prática, os carros não chegam nem perto das velocidades que podem desenvolver, nem nas estradas e muito menos na cidade. A velocidade máxima da Ferrari Enzo é de 355 km/hora. Na Trabalhadores, é possível dirigir a 120 km/hora, mas no congestionamento de São Paulo, ela vai trafegar mesmo a 13 km/hora, e ser ultrapassada por uma bicicleta.

As ruas das cidades decididamente não são lugar de corrida. Em 1994, um leitor da revista Quatro Rodas ganhou uma Ferrari num concurso.  Ele saiu todo feliz da concessionária mas descobriu logo no primeiro dia que o carro não conseguia passar por cima das lombadas da sua rua. Um dia depois, ele  devolveu o prêmio e preferiu sua parte em dinheiro.

As velocidades máximas permitidas estão caindo no mundo todo. Está provado que a vida nas calçadas é impossível com o barulho e a ameaça de carros zunindo ao lado. Além disso, a mais de 50 km/hora, uma colisão com um pedestre termina, quase certamente em morte.

 

O ideal de liberdade deixa de funcionar quando todos têm um carro
O ideal do país dos carros, os Estados Unidos, sempre foi o da liberdade. Ter um carro significava ir aonde quiser – e quem não gosta do sonho de pegar uma estrada vazia com o som alto, em direção a um destino desconhecido?

 

Mas no Brasil dos dias de hoje, a estrada vai estar cada vez mais cheia, as barreiras da Tamoios caem, os pedágios enchem, e o fim de semana na praia vira um pesadelo.

Na cidade século XXI, o consenso é de que não há lugar para tantos carros. Aí é que parece estar o anacronismo. O objeto parado no Salão do Automóvel, reluzente e silencioso é um. O mesmo objeto enfileirado ao lado de milhões de outros numa rua, barulhento e fumacento é que não funciona.

Lentamente, assistimos ao nascimento de uma nova noção, a de que o deslocamento de uma pessoa não atrapalhe o de outra, ou seja, uma situação em que todos possam chegar a seus destinos com dignidade. Isso inclui quem tem e quem não tem carro, um paradigma que as cidades com vias expressas, transporte público ruim e calçadas estreitas parecem estar lentamente se lembrando de adotar.

 

O carro como meio de transporte está em transformação
A venda de carros no mundo continua crescendo, principalmente por causa da China, mas, nas grandes cidades, os planos de mobilidade estão abandonando a prioridade ao carro e mudando para o transporte coletivo. A razão é que o modelo em que cada um tem um carro não está funcionando. Não há espaço para todos e o trânsito mostra isso.

Em São Paulo, apenas um terço dos deslocamentos diários são feitos por carro e a cidade já não tem mais como acomodar novos automóveis. O espaço nas ruas é desproporcional e injusto. Hoje, há clareza de que a maneira de melhorar a mobilidade é diminuir a dependência do carro e aumentar a oferta de transporte público e da mobilidade ativa.


Bicicletas no dia de greve dos caminhoneiros Foto: Bike Oeste

As palavras da moda são multimodalidade (todos os meios de transporte são importantes) e intermodalidade (todos os meios têm que se integrar): a pessoa sai de casa, anda a pé até um ponto de compartilhamento de bicicleta, vai até o terminal de ônibus,  troca o ônibus por um metrô e, na chegada ao destino, pega um aplicativo.

O próprio carro vai ser diferente e talvez sirva a diferentes usos. A tecnologia de carros autônomos já está disponível e falta apenas uma rede de transmissão os regulamentação para vermos veículos rodando sem motoristas por aí. Os carros elétricos talvez viabilizem a questão da energia e certamente vão diminuir a poluição das ruas.


Carro elétrico Foto: Mauro Calliari

Mas a grande mudança talvez seja em relação ao compartilhamento – de carros, bicicletas e um monte de outras coisas como espaços de trabalho e até casas de férias. Está mudando a noção de posse que temos desde sempre. Logo, logo, não será mais preciso ser o dono de um carro para poder usá-lo. Isso é uma mudança enorme, de status, de relação com o bem. De “donos” de um carro, passamos a ser “usuários”.

Em vez de estar amarrado ao IPVA, vaga na garagem, multas, estaremos mais livres para pensar em outras coisas melhores. Os carros ocuparão menos espaço de garagens e, como propõe o pesquisador Carlo Ratti, do MIT, talvez sobre mais espaço para espaços públicos.

 

Novos comportamentos em relação à mobilidade
Os dados mostram que pessoas que completam 18 anos estão menos ansiosas para tirar a carta de motorista, tanto no Brasil como em outros países. Vejo cada vez mais pessoas por aí que abrem mão de parar dentro de um congestionamento e chegam tranquilos aos lugares, depois de pegar metrô, ônibus, andar um pouco, pegar um taxi, um uber, uma bicicletinha do Itaú e, claro, caminhar.

 

Foto: Mauro Calliari


Vai ser interessante ir ao Salão do Automóvel daqui a dez anos e comparar com o de hoje. Não tenho ideia do que veremos, mas espero sinceramente que a gente possa sair do metrô e andar até lá com tranquilidade, por uma calçada larga, numa cidade menos poluída e congestionada, onde todos se locomovem juntos num espaço urbano mais acolhedor.

 

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