Por que o Rio tem um dos piores sistemas de transporte do mundo?

Estudo recente aponta o Rio de Janeiro como a cidade com o pior sistema de transporte entre 74 avaliadas. O pesquisador Juciano Rodrigues tenta explicar porque

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Fonte: Observatório das Metrópoles  |  Autor: Juciano Martins Rodrigues*  |  Postado em: 01 de agosto de 2018

Trem urbano no Rio de Janeiro

Trem urbano no Rio:lotação desumana e longas viagens

créditos: Sonia Rabello

Estudo realizado por uma empresa inglesa de consultoria, apontou o Rio como a cidade com o pior sistema de transporte entre as 74 avaliadas. O relatório aponta como pontos negativos o tempo de viagem, a espera para pegar a condução, número de baldeações, distância percorridas e o custo mensal do transporte relacionado ao salário médio da população.

Neste artigo, publicado originalmente no "Observatório das Metrópoles", o pesquisador Juciano Rodrigues, reflete sobre as razões para esse resultado, além de destacar que, entre os aspectos não tratados pelo estudo, está o acesso desigual dos grupos sociais aos bens públicos e ativos do transporte, uma das características mais marcantes do padrão de organização e funcionamento dos sistemas de transporte no Brasil.

 

Os meios de comunicação repercutiram, nas últimas duas semanas, um estudo realizado pela empresa inglesa de consultoria ExpertMarket, que aponta a metrópole do Rio de Janeiro com o pior sistema de transporte entre as 74 cidades avaliadasi. São destaques negativos os indicadores de tempo de viagem, da espera para pegar a condução, do número de baldeações, das distâncias percorridas e do custo mensal do transporte relacionado ao salário médio da população.


Das cidades do Brasil consideradas no estudo, fazem companhia ao Rio, entre as dez piores do ranking, São Paulo, Recife, Brasília e Salvador. Até aí nenhuma novidade, já que eventos relacionados à situação caótica da mobilidade urbana estão presentes exaustivamente em todos os meios de comunicação e os efeitos dessa crise são cada vez mais evidenciados em pesquisas e estudos realizados no país. O caso do Rio, contudo, chama ainda mais a atenção porque nenhuma das outras recebeu tantos investimentos em período recente, principalmente aqueles vinculados aos chamados megaeventos esportivos.


Nesse contexto, as conclusões dessa pesquisa são de grande relevância, pois, além de revelarem pela primeira vez como estão situadas as cidades brasileiras num panorama comparativo internacional, chamam a atenção para a situação caótica de seus sistemas de transporte. A despeito de sua importância, o estudo deixa de revelar importantes nuances de cada cidade e não oferece quaisquer pistas sobre as causas dos problemas.
Por isso, em primeiro lugar, vale a pena destacar o fato de que aspectos internos às condições de cada cidade não foram considerados, o que não chega a ser uma falha, já que não era objetivo dos responsáveis pelo levantamento alcançar esse nível de análise.


Sabemos, contudo, que uma das principais características do padrão de funcionamento dos sistemas de transporte no Brasil são as enormes desigualdades nas condições de deslocamento entre grupos sociais, decorrentes, em grande medida, dos diferentes níveis de acesso aos bens públicos e ativos do transporte presente nas cidades. Os resultados do Censo Demográfico 2010 mostram, por exemplo, que o número de homens que se deslocavam de casa para o trabalho diariamente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) era 37% superior ao de mulheres. Isso pode ser resultado da própria estrutura do mercado de trabalho, mas também dos inúmeros constrangimentos que afligem as mulheres no acesso ao sistema de transportes.


A mesma fonte de dados também revela que 32% das pessoas negras levavam mais de uma hora no trajeto diário, enquanto a média para a RMRJ como um todo é pouco mais de 28% e dos brancos é de 26%. Quanto à dimensão da renda, a população mais pobre também tende a gastar mais tempo nos deslocamentos casa-trabalho. Pereira e Schwanen (2012) mostraram que nas áreas metropolitanas do Brasil, os mais pobres gastam em média 20% a mais de tempo do que os mais ricos. No caso da RMRJ, embora, tenha ocorrido uma piora no tempo de deslocamento daqueles situados nos decis superiores de renda, a situação dos mais ricos permanece consideravelmente melhor do que a do resto da população.


No caso da metrópole do Rio, essas desigualdades parecem ser, portanto, ainda mais relevantes e estudos mais panorâmicos de fato não conseguiriam captar o efeito da desigualdade social e da segregação residencial sobre o acesso ao sistema de transporte e, consequentemente, sobre as condições de deslocamento cotidiano. Do ponto de vista dos territórios, a desigualdade também é evidente. A metrópole já é conhecida por ter o município com o maior tempo de deslocamento do Brasil – Japeri, na região da Baixada Fluminense. Lá o tempo médio de deslocamento apenas de ida para o trabalho é de quase 69 minutos, contra 47 da cidade do Rio ou, ainda, 34 minutos de sua vizinha Paracambi.


É preciso dizer que esse sistema de transporte, hoje colocado como um dos piores do mundo, é resultado de opções políticas que ditam os rumos de uma cidade. E está no escopo dessas opções as decisões sobre que modo de transporte os cidadãos terão para escolher, por quais vias vão transitar ou, ainda, em que espaços públicos poderão circular.

 

Ônibus presos em congestionamentos no Rio de Janeiro


Obviamente, não é tarefa fácil responder como as cidades brasileiras chegaram a esse ponto. Muitas das respostas só podem ser encontradas se retrocedermos 40 ou 50 anos, quando se forjou no seio do Estado desenvolvimentista o modelo de transporte predominante nos dias de hoje, substituindo, primeiro, o transporte sobre trilhos pelo ônibus urbano e, posteriormente, pelos veículos motorizados individuais. Mas, pelo menos em parte, a posição negativa das cidades brasileiras pode ser explicada pela irremediável incapacidade do poder público em identificar a natureza dos reais problemas que atingem a população, assumindo projetos despropositados, a exemplo dos teleféricos implantados no Rio de Janeiro, hoje todos fora de operação.


Investimentos: 30 bilhões
No caso do Rio, embora não seja possível cravar um número exato, é provável que a cidade-sede da final da Copa de 2014 e dos Jogos Olímpicos 2016 tenha recebido em torno de 30 bilhões de reais em investimentos em função desses eventos. O conjunto de ações incluiu a implantação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), BRT’s e a expansão do metrô, com a construção da Linha 4. Mesmo assim, como se vê no resultado do estudo inglês, a cidade continua ocupando as piores posições em matéria de sistema de transporte. Vale destacar que, além dos volumosos investimentos que foram aportados para o transporte público, ocorreram também ações voltadas para a circulação de veículos motorizados individuais, como os túneis da área portuária e a duplicação do elevado do Joá, que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca, duas das áreas mais ricas da cidade.


Em relação à ampliação do Joá, que incluiu a construção de túneis e viadutos, a obra fez parte do pacote de infraestruturas da cidade para os Jogos Olímpicos de 2016 e custaram em torno de R$ 500 milhões. Segundo informações da Prefeitura, as novas pistas construídas permitiriam ampliar em 35% a capacidade de circulação da via, que já recebe até cem mil veículos por dia.


Nas palavras do então prefeito Eduardo Paes: “Talvez essa seja uma das obras mais vinculadas aos Jogos Olímpicos. Ela é importante para a mobilidade da família olímpica entre a Barra da Tijuca e a zona sul e, obviamente, beneficia esse corredor. Isso vai melhorar muito. É um gargalo permanente”. Naquele momento havia, portanto, um claro direcionamento das políticas com clara orientação para a cultura do automóvel. Isso acabou refletindo na crescente motorização individual ocorrida nos últimos anos na cidade. Entre 2009 e 2016, o número de automóveis passou de 1,7 milhão para 2,3 milhões, o que corresponde a um aumento de 34%.


Desse modo, fica claro que as intervenções orientadas para a circulação desses veículos constituíram um componente importante no planejamento de transporte na cidade, apesar de todas a recomendações da Política Nacional de Mobilidade Urbana consagrada na Lei 12.587 de 2012 em prol dos transportes coletivos e dos modos ativos de deslocamento. Vale lembrar que o próprio Elevado do Joá, agora ampliado para dar mais espaço para os carros, é uma via paralela à obra mais cara implantada nos últimos anos, a Linha 4 do Metrô, o que revela um dos grandes contrassensos da política de mobilidade urbana implantada nos últimos anos.


Isso tudo talvez ajude a explicar a péssima posição ocupada pelo Rio de Janeiro no ranking elaborado pela empresa de consultoria inglesa, pois, além de ocupar a última colocação, a cidade aparece também muito mal posicionada nos indicadores do tempo médio de deslocamento e na média do número de horas que as pessoas passam presas em congestionamentos. Outra constatação, dada a interpretação dos resultados do estudo elaborado pelos ingleses, é que os bilhões investidos em mobilidade urbana no contexto da preparação para os megaeventos não conseguiram mudar, nem mesmo amenizar, a situação do transporte público.

O tempo médio de espera no ponto por um ônibus ou trem na cidade é maior do que a grande maioria das outras cidades consideradas no estudo. Além disso, 62% dos usuários precisam fazer ao menos uma baldeação em suas viagens diárias, o que pode ter piorado após a equivocada e estranha Racionalização das Linhas de Ônibus, iniciada em 2015. Essa racionalização teve claramente um viés restritivo e excludente. A exclusão e o encurtamento de linhas – exigindo maior número de baldeações – restringiu claramente a capacidade de circulação da parcela mais pobre da população. Curiosamente, naquele momento, onze das 21 linhas que foram encurtadas faziam a ligação entre as Áreas de Planejamento (AP) 2 e 3, opostas em termos de renda e demais indicadores sociais. Dessas onze, seis tinham os bairros do Leblon e Ipanema como origem ou como destino, justamente os territórios mais ricos da cidade (leia mais).


Mobilidade ativa
A falta de planejamento e incapacidade de identificar as necessidades reais da população também atingiu as políticas para o transporte ativo. Em relação à bicicleta é verdade que existe poucos dados para subsidiar as políticas públicas, mas os que estão disponíveis mostram que quem usa a bicicleta na cidade, a usa com muita intensidade. Os resultados da última pesquisa “Perfil do Ciclista” revela que 74,7% das pessoas a usam mais de cinco dias durante a semana e por múltiplos motivos: ir para o trabalho (77,3%), para escola ou faculdade (27,7%), para locais de compras (53,7%) ou ainda para se dirigem a espaços de encontro social ou lazer (56,9%). Em relação ao uso da bicicleta, há, sem dúvida, uma demanda reprimida, relacionada sobretudo à falta de infraestrutura. Segundo a mesma pesquisa, 54,4%, usariam a bicicleta mais vezes se houvesse mais ciclovias e bicicletários.


Um dos casos mais absurdo e equivocados da política de transporte implantada entre os anos 2009 e 2016 é a implantação da ciclovia Tim Maia que, como o Elevado do Joá, liga a Zona Sul à Barra da Tijuca. Para além do erro do projeto, que não considerou que ondas fortes poderiam atingir a base da pista da ciclovia – o que culminou na queda de um trecho no dia 21 de abril de 2016 -, há um grave problema de concepção, revelando como o tema é tratado no interior do poder público. Com os mais de R$ 45 milhões gastos com essa obra, seria possível implantar ciclovias em áreas de maior demanda e reestruturar o conjunto das já existentes, resolvendo o problema histórico de desconectividade entre elas, uma velha reivindicação dos cicloativistas.


A caminhada para tirar o Rio das piores posições em qualquer ranking que trata de avaliar a qualidade do seu sistema de transporte é sem dúvida muito longa, ainda mais quando se trata de um lugar com tantos desafios e problemáticas diversas como a RMRJ; onde, por exemplo, problemas políticos, sociais e econômicos se misturam às questões de segurança pública e transporte. No entanto, é certo que, dada a gravidade da situação dos sistemas de transporte, que coloca em risco a vida dos cidadãos, não garante padrões mínimos de bem-estar e mantém grande parte da população excluída das oportunidades do mercado de trabalho e do ensino, não há mais espaço para projetos mirabolantes.


As soluções sem dúvida passam por questões estruturais e que só vão ser revolvidas a médio e longo prazo, a exemplo da ampliação da oferta de moradia nas áreas centrais, sobretudo no município núcleo, aproveitando, inclusive, os terrenos públicos disponíveis, principalmente os de propriedade da União. Ao mesmo tempo, a situação insuficiente da infraestrutura implanta e o abando de obras, como a do BRT Transbrasil, e a descontinuidade de serviços como os dos teleféricos, são exemplos mais que expressivos do fracasso de um modelo equivocado de desenvolvimento urbano. Baseado em grandes projetos, que visam atender mais uma vez o setor de grandes obras públicas e o mercado imobiliário.


Nesse sentido, a implosão da gramática política que rege a relação entre os poderes públicos municipal e estadual e as empresas operadoras do transporte e com as grandes empresas de obras, sem dúvida abriria um caminho. Sem isso, a posição do Rio no fim da fila tende a não se alterar, pois essa relação influencia desde o planejamento de transporte mais geral e de longo prazo até a política das linhas de ônibus. Nesse jogo, como temos visto, quem sempre perde é o usuário cidadão.

 

*Juciano Martins Rodrigues é professor Visitante no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ. Pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Mobilidade Sustentável – Prourb/UFRJ

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