Há 50 anos, a última viagem de bonde em SP. Mas ele pode voltar, com o nome de VLT

Do Ibirapuera, o cortejo de bondes seguiu até o Largo 13, em Santo Amaro, pelo caminho da atual avenida Vereador José Diniz. Leitores lembram a data

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Fonte: Folha de S. Paulo  |  Autor: Fabrício Lobel  |  Postado em: 27 de março de 2018

Despedida dos bondes em São Paulo em 27/03/1968

Despedida dos bondes em São Paulo em 27/03/1968

créditos: Foto: Acervo UH/Folhapress


Há exatos 50 anos, o motorneiro Francisco Lourenço Ferreira se arrumava pela última vez para o trabalho que teve durante quase toda a vida. A postos, Francisco ouviu do prefeito Faria Lima a ordem: “Toca o bonde!”. E assim começou a última viagem desse meio de transporte na cidade de São Paulo. Os jornais da época contam que Francisco era o condutor de bonde mais antigo da capital paulista. Sua experiência, porém, era cada vez menos útil numa São Paulo que crescia rápido demais para a velocidade dos veículos pesados.

 

As linhas do meio de transporte, que chegaram a ter 700 km, estavam sendo extintas ano após ano. Os constantes acidentes, panes elétricas, engarrafamentos e os veículos sucateados nas últimas décadas só ajudavam a prejudicar a fama dos bondes. Pesquisador do tema, o urbanista Ayrton Camargo e Silva credita o fim dos bondes a uma série de políticas públicas tomadas principalmente pelas duas gestões do prefeito Prestes Maia (de 1938 a 1945 e de 1961 a 1965). O prefeito, afirma Ayrton, defendia o modelo de uma cidade expandida e para a qual o transporte por bondes era custoso e ineficiente demais. Ele tomou medidas para sufocar aos poucos os bondes. Mas na época a prefeitura ainda não tinha condições de implantar um novo sistema de ônibus —o que deu sobrevida ao meio de transporte.


Quase 20 anos depois, Prestes Maia se elegeu com a proposta de sanear as contas públicas e também acabar com os bondes. O fim do transporte, porém, só ocorreu na gestão seguinte, com Faria Lima. “Ele tocou no ponto sensível: propor à população a criação do Metrô de SP. Ele acenou com uma promessa moderna para justificar os fins dos bondes”, diz Ayrton.

 

Mapa do sistema de bondes de São Paulo por volta de 1946

 

A última viagem de bonde na capital ocorreu menos de um mês antes da fundação do Metrô, em abril de 1968. Mas, de maneira contraditória, os bairros da última linha de bonde só serão ligados ao centro neste ano, com a expansão da linha 5-lilás do Metrô. A linha 101, que ligava o Instituto Biológico de São Paulo, no Ibirapuera, ao largo 13 de Maio, em Santo Amaro, era a última a resistir à pressão da prefeitura. Naquela noite de março de 1968, para celebrar o marco, um cortejo de 12 bondes desceria pela última vez as avenidas Ibirapuera, Vereador José Diniz e Adolfo Pinheiro até Santo Amaro. A prefeitura havia enfeitado os veículos com luzes coloridas, bandeiras do Brasil e do estado de São Paulo. Faixas fixadas nos veículos diziam “A viagem do Adeus” ou “Rendo-me ao progresso, Viva São Paulo”.


Políticos se acotovelaram para entrar no bonde conduzido por Francisco, que era o primeiro do cortejo e onde estava o prefeito Faria Lima. Entre eles, o governador Abreu Sodré, o presidente da Câmara Municipal, além de deputados e vereadores. Em outro bonde, uma banda tocava marchas e valsas. Pelo caminho, o cortejo foi saudado pelo público que, segundo relatos, chorava.


Em 2018, Ayrton avalia que é possível retomar os bondes em São Paulo, desde que ligados a projetos mais amplos de revitalização urbanística —a exemplo do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) da zona portuária carioca. “Muitos endereços no corredor da Rangel Pestana e Celso Garcia [zona leste] estão ficando ociosos e é preciso pensar em uma revitalização. Por isso, o bonde pode ser uma modalidade de transporte aliada a esse projeto”, diz.

 

 

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Beto estava lá...
Leia o depoimento de José Roberto Gomes Rocha (na foto com seu pai, Roberto), um leitor do Mobilize que esteve nessa última e sentimental viagem do bonde paulistano. em 1968 

 

"Difícil lembrar exatamente. Tenho claro para mim que um dia qualquer meu pai me pegou pela mão (exatamente isso, me pegou pela mão) e disse que seria a última viagem do bonde, e nós não podíamos perder essa. Foi na Vila Mariana. Pouco me lembro, só pode ter sido na Domingos de Moraes, onde hoje passa o Metrô. O bonde era fechado, claro, mas lembro dos bancos de madeira. Pouco me lembro. Só uma coisa ficou clara na memória (memória da memória dele?), que no percurso notei meu pai com os olhos sonhadores, distantes, e talvez úmidos, lembrando-se (quem sabe) das viagens com minha mãe, para passear no cinema, essas coisas, sei lá. Não me lembro em que ano foi. Lembro-me que ele me segurava todo tempo pela mão, apesar de eu não ser mais um menino. Só posso garantir que essa foi a última viagem do bonde, que passava pela Vila Mariana. E não me recordo de muito mais."

 

...e Márcio Ribeiro também...
O médico Márcio Peres Ribeiro, que morava no Campo Belo e usava o bonde diariamente, lembra como foi marcante aquela última viagem... 

Para a escola, de bonde
"Nasci na Rua Vieira de Morais, bairro do Campo Belo, em novembro de 1948. Esse bairro originara-se do loteamento da Fazenda Vieira de Morais, tornando-se um bairro afastado entre São Paulo e Santo Amaro, que a essa altura já havia sido incorporado à capital. As ruas eram de terra, sem delimitações de sarjetas, algumas casas com calçadas e outras até sem muros ou portões. O transporte público mais usado para se chegar ao bairro era o bonde. 


Cinco quarteirões distantes da “linha do bonde”, como era chamada, passava a Avenida Santo Amaro, tratada carinhosamente pelos moradores como “autoestrada”, onde passavam algumas linhas de ônibus. Era tudo o que existia em matéria de transporte! Quem não fosse proprietário de um automóvel, teria que utilizar um desses meios e andar por alguns quilômetros, dependendo de quão longe morasse de uma dessas vias. É fácil imaginar a importância do bonde naquela região. 


Fui criado usando o bonde todos os dias, especialmente depois que completei 10 anos, e passei a estudar em um colégio na Vila Mariana. Nessa altura, os motorneiros e os cobradores já conheciam a maior parte dos usuários, principalmente as crianças que já andavam sozinhas e a quem ajudavam a entrar e sair por suas portas acionadas por um sistema de vácuo. Lembro-me muito bem do motorneiro Sr. Pedro, um senhorzinho que acredito já estivesse próximo à aposentadoria que sempre me chamava pelo nome e perguntava como estava minha mãe. 


Nessa época não se conhecia congestionamentos, principalmente para os bondes que utilizavam um caminho exclusivo e podiam desenvolver velocidade maior, entremeando uma parada e outra. Quando o Sr. Pedro, com seu boné de aba dura, escrito CMTC, se aproximava da Parada Piraquara, que era a mais perto de casa, era uma alegria! Ele dirigia aquela máquina com muito garbo e orgulho e era muito querido por todos usuários que já o tinham como amigo. 


Em março de 1968 foi a última vez que um bonde atravessaria a cidade de São Paulo por aqueles trilhos. Não poderia, depois de tantos anos de uso, deixar de compartilhar aquele momento. Fui até o Instituto Biológico e junto com o prefeito Faria Lima, que era meu vizinho, e outras autoridades, fiz questão de estar dentro do vagão que faria a última viagem, para meu último adeus. 


Quando chegamos em Santo Amaro, senti como se estivesse encerrando uma fase de minha vida, e que nunca mais sentiria aquela brisa fresca entrando pelas janelas sempre abertas, com o frescor do campo e o som de metal correndo sobre metal. A tecnologia pode ter evoluído, mas o prazer de andar de transporte público nunca mais foi o mesmo.
"

 

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