O ato de caminhar como processo criativo não se restringe a músicos, filósofos, escritores, fotógrafos ou cineastas. Ao divagar pela cidade, pessoas de diferentes profissões e idades também adotam o hábito de contemplar e observar, criteriosamente, ruas, praças, árvores, intervenções artísticas, edifícios públicos e outros elementos que compõem o lugar onde moram. Reparar numa calçada quebrada, nas dificuldades de mobilidade e de sinalizações também faz parte dessa experiência capaz de desenvolver uma postura mais crítica e cidadã.
Imortalizado na poesia do francês Charles Baudelaire, o flâneur foi um tipo urbano muito comum nas ruas de Paris no século 19. Já no século 20, a figura do andarilho das cidades chamou a atenção do filósofo Walter Benjamin, que o analisou como peça-chave na tradução de novas experiências que delineavam a vida na metrópole moderna.
“O flâneur transforma o vagar (ou o vagabundear) em uma espécie de ofício ou de arte. A arte de observar e caminhar a esmo pela cidade. Perder-se era uma forma de encontro. Transformar o familiar em estranho e o estranho em familiar era um lema. Era preciso estranhar o cotidiano, desnaturalizá-lo, encontrar nele aquilo que se perde no dia a dia”, explica o sociólogo Liráucio Girardi Júnior, professor de Sociologia da Faculdade Cásper Líbero e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).
Há anos, Girardi Júnior trabalha com esse tema em sala de aula. “Tento mostrar como compositores populares (tanto os mais tradicionais da MPB quanto os mais jovens, os sambistas, os rappers e, de alguma forma, o funk) fazem esse tipo de registro. A publicidade, vez ou outra, aproxima-se da cidade, do seu cotidiano, para tirar deles seus storytellings. O cinema, a televisão e a literatura retiram disso sua inspiração. O que dizer, então, dos canais do YouTube?”, contemporiza o professor.
Errantes urbanos
Já imaginou poder conhecer a capital paulista sob o ponto de vista das canções do sambista Adoniran Barbosa? E que tal percorrer a cidade experimentando os cinco sentidos de maneira nada convencional: olfato (flores do cemitério do Araçá); audição (pássaros da praça Benedito Calixto); visão (grafites do Beco do Batman); tato (canteiro central da avenida Pedroso de Moraes); e paladar (plantas alimentícias não convencionais no parque Villa Lobos)? Quem faz esse convite é o grupo Desbravadores de Sampa, criado pelo fotógrafo Hugo Peroni, visando amplificar a experiência de divagar pela metrópole – seja caminhando ou correndo.
A ideia surgiu enquanto Peroni se dirigia para a casa do irmão na Parada Inglesa, a 18 quilômetros de onde mora, no bairro da Saúde. “Naquele domingo de 2011, em vez de usar o convencional metrô, fui correndo. Foi a partir daí que comecei a descobrir a cidade e detalhes que eu jamais imaginaria que existiam”, recorda.
Hoje, quem busca as atividades do Desbravadores pode escolher entre quatro tipos de percursos: temático (como o dos sambas de Adoniran ou o dos cinco sentidos por São Paulo); livre (o destino é escolhido na hora, ao virar uma esquina, num consenso entre os participantes); experimental (desenvolvido a partir de desafios e metas); e “minha quebrada” (os participantes se aprofundam no espaço onde residem).
Peroni prefere não escolher um percurso em especial, mas há uma sensação que compartilha com outros desbravadores. “São Paulo não é tão perigosa e inacessível quanto nos mostram. Nunca tivemos problemas com segurança. Mesmo que, na cidade, existam as fronteiras invisíveis que separam e segregam, é preciso experimentá-la”, defende.
Essa motivação tomou conta dos transeuntes da capital paulista nas últimas duas décadas, segundo o pesquisador Mauro Calliari, autor do livro Espaço Público e Urbanidade em São Paulo (BEI Editora) e criador do blog Caminhadas Urbanas, no jornal O Estado de S. Paulo. “São vários os movimentos que, juntos, mostram um desejo de reapropriação da cidade: o aumento de interesse e frequência nos parques e nas praças da cidade, como a Roosevelt; o crescimento do Carnaval em São Paulo; o uso das ‘ruas abertas’ da cidade aos domingos; a arte urbana, como o grafite e o rap; grandes eventos como a Virada Cultural; hortas urbanas; entre outros”, exemplifica.
Protagonismo nas ruas
O fato é que de 30% a 50% dos deslocamentos diários nas cidades são feitos a pé, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP). Tanto que “alguns especialistas defendem a ideia de tratar as rotas peatonais (para pedestres) como sistemas de transportes que merecem uma manutenção programada, tal como se faz nas redes de metrô, por exemplo”, destaca Marcos de Sousa, editor e coordenador de campanhas do Mobilize Brasil, primeiro portal brasileiro de conteúdo exclusivo sobre Mobilidade Urbana Sustentável.
“Caminhar é a forma mais simples, natural e de menor impacto para os deslocamentos nas cidades. Quem se desloca a pé não produz ruído, ocupa pouco espaço nas ruas e tem uma ‘pegada ambiental’ bem leve. Faz bem para a saúde física, mental e ainda contribui para a ‘saúde’ das cidades. Reduz a poluição do ar, o ruído e os congestionamentos localizados”, complementa Marcos. “Quem anda vê coisas surpreendentes, descobre recantos, pracinhas, lojas interessantes, ouve os pássaros, encontra pessoas, faz amigos, ouve até o ruído dos rios canalizados que estão sob o asfalto.”
Por isso o Mobilize Brasil pretende realizar, ainda neste ano, a segunda edição da Campanha Calçadas do Brasil: um levantamento sobre a situação das “redes de caminhabilidade” nas capitais e em algumas cidades de maior porte. Nele serão medidas a qualidade das calçadas, a sinalização, o conforto e a segurança que cada cidade oferece ao pedestre.
Outro levantamento com a mesma finalidade é o Índice Cidadão de Caminhabilidade, metodologia desenvolvida pela SampaPé!, organização sem fins lucrativos criada em 2012 com o objetivo de melhorar a experiência do caminhar na cidade. Entre as ações organizadas pela SampaPé! estão passeios temáticos, oficinas, diálogos com o poder público, formações, pesquisas e experimentações lúdicas. Fundadora e coordenadora geral da organização, Letícia Sabino acredita que, ao se movimentar pela cidade, ela se tornou ativa e ativista por uma vida urbana mais humana e desacelerada.
Consequentemente, ela constata problemas comuns e estruturais e ações relevantes. “Tais como melhorar a qualidade e a acessibilidade das calçadas e garantir uma iluminação pública adequada. Além de pequenas coisas afetivas que devem ser construídas com os cidadãos: desde flores nos postes, como há na Vila Madalena, até venda de frutas e verduras nas ruas, como acontece no Jardim Ângela, e apresentações musicais, como há na avenida Paulista”, ressalta.
Como resultado, a simples ação de transitar a pé pela cidade passa a acompanhar uma responsabilidade social e uma fruição sensorial do meio onde vivemos. “Para isso, basta sair de casa com um pouquinho de antecedência, cinco minutos são suficientes para que você possa ter o tempo de respirar, olhar o entorno, talvez até parar para tomar um café, checar uma mensagem. É possível olhar para o entorno, apreciar as lojas, o movimento das pessoas, um horizonte, e as surpresas que a cidade sempre tem”, arremata o pesquisador, e flâneur, Mauro Calliari.
Olhos da Rua
Andarilhos na literatura: conheça autores e livros que têm no ato de caminhar a motivação para histórias inesquecíveis
Aos 81 anos, o jornalista e cronista Ignácio de Loyola Brandão afirma ter até hoje um hábito: o de perambular pelas ruas como processo criativo. “Andar e anotar, andar e anotar. Não dirijo e não sei dirigir. Por isso, caminho por essa cidade e olho tudo a minha volta. Tive uma professora que falava: ‘Essa história de inspiração não existe. Trata-se de observar as coisas, perguntar e conversar’”, recorda.
Neste mesmo passo, o professor de Filosofia na Université Paris-XI Frederic Gros, autor de Caminhar – Uma Filosofia, Ed. É Realizações, 2011, reivindica a prática do passear. Atividade exercida com maestria por pensadores como Kant, Thoreau, Nietzsche, Rousseau, entre outros. Se, no século 19, o flanar do poeta francês Rimbaud, por exemplo, era disperso, o do filósofo alemão Nietzsche esnobava energia.
Diferenças à parte, é irrefutável que o caminhar desses pensadores gerou nada menos que pensamentos impressos em grandes obras. Além deles, confira outros autores e leituras do caminhar:
O Homem que Passeia
Ed. Devir, 2017, de Jiro Taniguchi
Quadrinista japonês premiado internacionalmente – alçado a Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras da França em 2011 –, Tanigushi materializa a poesia dos errantes nesta HQ escrita na década de 1990. Para o leitor, que passeia com os olhos por oito trajetos do mesmo homem por sua cidade japonesa, há um convite à contemplação sem hora nem destino marcados.
As Cidades Invisíveis
Ed. Companhia das Letras, 1990, de Ítalo Calvino
Originalmente publicado em 1972, este livro faz um convite à imaginação ao criar um diálogo fantástico entre Marco Polo, considerado o maior viajante de todos os tempos e o famoso imperador dos tártaros, Kublai Khan. Minuciosamente, Polo descreve 55 cidades agrupadas numa série de 11 temas, tais como “As cidades e a memória”.
A Alma Encantadora das Ruas
Ed. Martin Claret, 1908, de João do Rio
Nesta coletânea de crônicas, publicada há exatos 110 anos, a cidade do Rio de Janeiro é esmiuçada pelo olhar do jornalista, escritor, teatrólogo e flâneur Paulo Barreto, conhecido pelo pseudônimo João do Rio. Pelas páginas, percorrem trabalhadores, mendigos, meninos de rua, entre outros personagens urbanos do início do século 20.
*Edição e adaptação de Mobilize Brasil
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