Nesta Semana da Mobilidade, o Mobilize Brasil completa seis anos de atividades. Para marcar a data, publicamos a visão de alguns colaboradores e ativistas sobre os avanços (ou retrocessos) obtidos pelo Brasil na área de Mobilidade Urbana Sustentável ao longo desses 2.200 dias. Continuamos a série com o texto de Alexandre Pelegi, consultor da ANTP e editor da Revista dos Transportes Públicos.
"Há uma novidade no ar. Na verdade, ela sempre esteve aí, e agora passou a ganhar a dimensão e atenção que sempre mereceu. Refiro-me ao modo mais antigo de transporte da humanidade: os pés.
Caminhar é um ato natural, intrínseco à vida dos humanos, e talvez por isso, com o avanço da ciência e o desenvolvimento de novas tecnologias, tenha sido guindado à condição de "modo arcaico”: menos digno, condenável do ponto de vista social, incompatível com o avanço da humanidade.
O homem inventou máquinas modernas para se permitir não só andar mais rápido, como chegar mais longe em menos tempo, e ainda com direito ao bônus fantástico de não precisar fazer força. E o avanço da tecnologia se deu em sentido contrário à valorização da locomoção por modos naturais: caminhar e andar de bicicleta para se movimentar nas cidades passou a ser visto como sinal de atraso social. Indo direto ao ponto: coisa de pobre.
Se podíamos chegar mais rápido e mais longe, por que não espalhar as cidades? Se pouco andamos a pé, para que se preocupar com calçadas? Por que não aumentar as ruas? O homem trocou os pés pelas rodas, a calma pela pressa, o perto pelo distante.
Nelson Rodrigues dizia que a velocidade é um prazer de cretinos. "Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca”, dizia ele. Fernando Pessoa traçou outro diagnóstico para um problema que não é recente: "Movemo-nos muito rapidamente de um ponto onde nada se faz para outro onde não há nada que fazer, e chamamos a isto a pressa febril da vida moderna. Não é a febre da pressa, mas sim a pressa da febre. A vida moderna é um lazer agitado, uma fuga ao movimento ordenado por meio da agitação.”
Vivemos no mundo da velocidade e, além de filhos, nos tornamos escravos da pressa. Pior: nos tornamos doentes. Três em cada dez trabalhadores sofrem da chamada "doença da pressa”. Pessoas que se tornam agressivas se o carro começa a andar mais devagar. São os tocadores de buzinas, os alucinados que não admitem a lentidão como obstáculo em seu caminho.
O preço do sucesso começa a sair caro demais. Contraímos doenças que jamais teríamos, e quedamos na dúvida existencial que nos move à vida: a pressa vale a pena? Por que corremos tanto, aonde a pressa nos conduzirá?
É quando o bicho-homem começa a sentir saudade de uma letargia que desconhece, como se quisesse andar num bonde que jamais viu. Esta metáfora de Nelson Rodrigues para se contrapor à velocidade dos cretinos é o insight que nos permite ver de perto, enxergar nosso próximo em sua essência. E nos descobrir como seres inteligentes. Andar a pé se contrapõe às doenças da vida moderna.
É quando começamos a perceber como, historicamente, temos banalizado situações que, agora, percebemos serem inaceitáveis à vida urbana: calçadas estreitas, calçadas esburacadas, calçadas inexistentes; a insuficiência de caminhos para o andar a pé conflitando com a generosa oferta de espaços para o automóvel; a injusta divisão do espaço que se reflete no tempo alongado das travessias dos cruzamentos, impondo o sacrifício de longas esperas aos caminhantes.
Entrada de evento sobre mobilidade a pé realizado em 2016, em São Paulo
Redescobrir o natural modo de se locomover nos leva a questionar as cidades que permitimos construir. E o que até recentemente era um ato prosaico, tornou-se uma ferramenta de questionamento. O homem quer repensar suas cidades, e sua melhor e mais inteligente arma são os seus pés. São eles que definem os caminhos e os espaços urbanos. São através deles que repensaremos nossas cidades e construiremos novos caminhos.
Mas, respondendo à questão, o Brasil avançou em projetos, planos e ações para a Mobilidade Urbana Sustentável? Temos um avanço? Em termos, mas ainda estamos distantes de tornar real o que sentimos no ar, de reduzir a distância abissal entre o sentir e o fazer.
O Estatuto das Cidades, e mais recentemente a Lei de mobilidade urbana, deram a entender que passávamos a questionar no país um modelo de cidade que exclui as pessoas e restringe sua participação nos destinos da vida urbana. Mas não é isso que se vê de fato.
Avançamos na criação de importantes marcos legais, mas avançamos pouco na produção de políticas públicas definidoras de uma nova essência de cidade. Continuamos a ser o país das ideias fora de lugar: falamos de exemplos vistos lá fora, mas ainda não temos força social para produzir nossas próprias mudanças cá dentro.
Não podemos esquecer que desigualdade social e mobilidade urbana guardam uma estreita relação. A distância entre as pessoas se mede não só em quilômetros, mas também em muitos indicadores socioeconômicos. Quanto mais cruel o apartheid social, mais duros são os reflexos na maneira como nos locomovemos na cidade. Aproximar as pessoas é o enorme desafio cujo enfrentamento não podemos nos furtar a cobrar de toda a sociedade, principalmente daqueles situados no topo da pirâmide social.
Ainda há muito que fazer, mas estamos no caminho: acredito que começamos a combater!"
*Alexandre Pelegi é matemático, consultor da Associação Nacional dos Transportes (ANTP) e editor da Revista de Transportes Públicos
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