Acaba de ser publicado um relatório com dados, análises e reflexões sobre o "incerto legado dos Jogos”, conforme designado no estudo da Fundação Heinrich Böll Brasil. Trata-se do estudo 'Rio 2016: projeto, orçamento e (des)legados olímpicos', de autoria de Poliana Monteiro e Renato Cosentino, realizado pela Ong em parceria com sociedade civil, e que relaciona interesses e os grupos de poder envolvidos nas escolhas feitas para a cidade nos anos de preparação e realização da Olimpíada.
O estudo veio a público justamente no dia anterior à divulgação de envolvimento do empresário Arthur César de Menezes Soares Filho, conhecido como 'Rei Arthur’, nos processos da Lava-Jato, juntamente com Carlos Arthur Nuzman, presidente do COB, acusado de intermediar corruptos e corruptores em prol da Rio 2016.
Com custos de R$ 43 bilhões, a pergunta que fica sobre a Olimpíada deve ser: de tudo o que foi gasto, o que afinal ficou para a cidade e seus cidadãos? Convém por na conta também os gastos anteriormente feitos para a Copa do Mundo de 2014. É preciso lembrar da promessa de que os Jogos trariam para a cidade obras urbanísticas importantes para a mobilidade urbana, ambientais - como a despoluição da Baía de Guanabara - e outras, como um modelo melhor de segurança pública, aumento de empregos e melhoria dos espaços públicos para lazer e prática de esportes.
Com a proximidade do evento, já se podia perceber a distância entre as promessas e a realidade. Já na apresentação, o estudo lembra que, a 49 dias para o início dos Jogos Olímpicos, o governador em exercício Francisco Dornelles decretava estado de calamidade pública por conta da alta dívida do estado com a União e fornecedores.
Capa do estudo da Fundação Heinrich Böll Brasil. Para ler na íntegra, clique aqui.
A seguir, o Mobilize destacou e transcreve abaixo o trecho deste estudo que trata dos projetos da Rio 2016 para a área de mobilidade urbana:
"O conceito Rio 2016 para a área do transporte se concentrou na implantação de um Anel de Transporte de Alta Capacidade que geraria uma rede de conexões, especialmente entre as quatro zonas das instalações olímpicas, além da reforma completa do Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim e da construção do Arco Rodoviário Metropolitano, financiado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O Anel de Transporte de Alta Capacidade no Dossiê de Candidatura é composto por três sistemas de Bus Rapid Transit (BRT), incluindo uma ligação Barra - Zona Sul, melhorias na rede ferroviária do subúrbio, extensão da Linha 1 do Metrô na zona sul. Como legado olímpico as intervenções gerariam uma rede de transporte coletivo de alto desempenho.
O BRT Transolímpica, a segunda via pedagiada da cidade, que conecta a Barra da Tijuca à Avenida Brasil, foi projetada para receber 70 mil passageiros/dia, e atualmente não atinge nem metade dessa estimativa. A baixa demanda é alvo de controvérsia, e há uma disputa judicial em curso sobre a tarifa do pedágio, uma das mais altas do Brasil. Já o BRT Transcarioca percorre 27 bairros, interligando a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim. Por fim o BRT Transoeste cruza toda a região da Barra da Tijuca vindo de Santa Cruz, se conectando à estação de Metrô Jardim Oceânico.
Os projetos dos traçados dos BRTs jamais foram discutidos publicamente ou divulgados integralmente às comunidades atingidas e certamente poderiam ter sido alterados de forma a minimizar os impactos das remoções, que alcançaram mais de 22 mil famílias na cidade.
Relatos recentes notificam que a utilização de asfalto comum em detrimento do concreto, recomendado para obras de corredor exclusivo para ônibus, ocasionou a rápida deterioração da pavimentação do BRT Transoeste no curto período de utilização, obrigando os motoristas a utilizarem a pista comum para carros no deslocamento em alguns trechos da via26.
Em meio às profundas transformações promovidas pelas obras de mobilidade vinculadas aos Jogos Rio 2016, os BRTs contribuíram para a legitimação da chamada Racionalização das Linhas de Ônibus em outubro de 2015. A extinção de 50 linhas, modificação/encurtamento de outras 26 impactou profundamente o cotidiano de milhares de usuários do transporte público, principalmente os moradores da zona norte e zona oeste. A opção pelos BRTs, que em muitos trechos foi acompanhado de novas pistas para carros, fortaleceu a opção rodoviarista que vem sendo aprofundada no Rio de Janeiro nas últimas décadas.
Diversas obras realizadas posteriormente sob o selo olímpico não constavam no Dossiê de Candidatura, nem no Caderno Legado Urbano e Ambiental, que afirmava que 'sem derrubar o que já existe, aproveitando a infraestrutura atual e reforçando a integração entre os meios de transporte, as intervenções apresentadas vão alterar substancialmente a malha viária'.
Nesse contexto, é curioso notar, por exemplo, que o Elevado da Perimetral figura no Dossiê de Candidatura como 'infraestrutura de transporte existente' sem nenhuma construção permanente necessária. Cabe o questionamento de quando e como a demolição do Elevado da Perimetral, intervenção extremamente impactante e controversa iniciada em 2012 com custo de mais de R$ 1 bilhão somente em seu primeiro trecho, se tornou vital para a realização dos Jogos Rio 2016. No mesmo ano em que se inicia a derrubada da perimetral, Eduardo Paes em entrevista concedida à TV Folha afirma que a 'Olimpíada é sensacional porque você pode usar como desculpa para tudo', com o objetivo de aproveitar essa oportunidade para 'vender o seu país'. A fala do prefeito sintetiza bem o processo de preparação do Rio de Janeiro para as Olimpíadas: desculpas travestidas de oportunidades e a legitimação do processo de mercantilização da cidade.
O Plano de Políticas Públicas – Legado dos Jogos foi divulgado em abril de 2014, pelos governos municipal, estadual e federal, como foi visto na seção anterior deste artigo. A APO e o Comitê Rio 2016 apresentaram uma relação de 27 projetos que foram acelerados e/ou viabilizados pelas Olimpíadas. Entre eles projetos já previstos no Dossiê de Candidatura e outros ainda não mencionados, como a duplicação do Elevado do Joá. A linha de BRT proposta no Dossiê de Candidatura, que ligaria a Barra à Zona Sul foi posteriormente substituída pela Linha 4 do Metrô Rio, que após muitos atrasos e polêmicas foi inaugurada, custando quase o dobro do estimado inicialmente e sob investigação da Operação Lava Jato da Polícia Federal. O sistema de trens não foi totalmente renovado e apenas as estações que receberam público olímpico obtiveram algum melhoramento. Assim, as promessas dos documentos de candidatura foram se esvaziando ao longo do processo e dando lugar às intervenções cada vez mais impactantes, espetaculares e contestáveis.
O VLT, citado nos documentos de candidatura, foi implementado recebendo críticas, tanto por ser um modal de média capacidade como devido ao projeto do traçado ter sido concebido unilateralmente pela Prefeitura, sem consulta à sociedade civil ou transparência no processo. O BRT Transbrasil, por outro lado, também apresentado como uma possível intervenção no Dossiê de Candidatura, curiosamente não foi inserido no Plano de Políticas Públicas e teve sua obras interrompidas um mês antes dos Jogos Rio 2016. A obra, cuja manutenção dos canteiros gera custo de R$ 6 milhões de reais por mês ao município, foi retomada recentemente, mas sem a perspectiva de habilitar a Avenida Brasil para receber os veículos em todo o trajeto previsto no projeto28.
A melhoria do sistema de transporte, um dos Legados Olímpicos mais promovidos pela gestão de Eduardo Paes, portanto, também não se efetivou. Das seis principais intervenções de mobilidade urbana vinculadas aos Jogos Rio 2016, cinco conectam a Barra da Tijuca a algum lugar ao qual ela já estava conectada, evidenciando o contínuo processo de reinvestimento em infraestrutura de localidades já bem estruturadas em detrimento das áreas que mais carecem de investimentos, seguindo a tendência do urbanismo de oportunidades e reforçando a especulação imobiliária."
Ainda sobre a área de transportes, no caso referente à região metropolitana do Rio, o estudo da Fundação menciona ainda outra importante intervenção que foi deixada de lado: a construção da primeira fase da linha 3 do metrô, de São Gonçalo a Niterói, que atenderia a mais de um milhão de habitantes e resolveria o principal gargalo do tráfego do movimento pendular casa-trabalho-estudo-casa no leste metropolitano. A obra que acabou sendo escolhida, lembram os autores, foi a que levou o metrô para a Barra (Linha 4), e que custou o dobro do trecho previsto da linha 3.
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