O blog Mobilize Europa, espaço onde colaboradores contam suas impressões sobre mobilidade dos lugares por onde passam, tem agora uma nova blogueira: a arquiteta paulistana Mariana Falcone Guerra. Formada pela FAU USP, Mariana está em Madri (Espanha) realizando seu doutorado na Universidade Politécnica daquela cidade.
Em São Paulo, Mariana faz parte de uma geração que está redescobrindo os espaços públicos. Moradora da região da av. Paulista, ela gosta de estar nas ruas, sair com os amigos, andar no Minhocão e Paulista abertos nos fins de semana: “Aos poucos o paulistano percebe que a rua pode ser mais do que um espaço para circulação de veículos, e é bonito ver o mar de gente caminhando, sentando nas calçadas, confraternizando no espaço público. Sentar numa calçada com os amigos e contemplar o movimento da rua é o que eu mais gosto de fazer”, revela.
Conheça a nova blogueira do Mobilize, na entrevista a seguir:
Como foi a opção por estudar áreas de desenho urbano e espaço público?
Antes mesmo de começar o curso de urbanismo na faculdade, já tinha interesse pelo assunto, talvez pelas experiências e observações que fui fazendo ao longo da vida. Em criança, morava numa rua de casas geminadas no bairro de Santo Amaro (zona sul de SP), e todos os vizinhos se conheciam, brincávamos na rua. Até que em 1985 algo bem ruim aconteceu: assaltantes entraram em casa, e ali permaneceram com minha família por horas. Depois disso meus pais decidiram se mudar para um loteamento fechado - Alphaville, em Barueri -, para onde fomos em 1994. Eles diziam que seria mais seguro, que poderíamos frequentar a rua sem preocupação, mas o que não entendi quando mudamos foi porque as ruas de dentro do condomínio eram desertas, não tinha comércio, apenas casas. Em São Paulo fazíamos tudo a pé; em Alphaville tínhamos que pegar o carro. Anos depois, minha irmã e eu íamos fomo fazer cursinho pré-vestibular em Osasco e íamos e voltávamos de trem, todos os dias.
Sempre gostei de trens, e essa experiência me permitiu vivenciar cotidianamente uma mudança drástica de cenários urbanos: o calçadão da rua Antônio Agu, em Osasco, repleto de pedestres e todo o tipo de atividade, e o lixão e as favelas de Carapicuíba, que avistávamos do trem; e Alphaville, com sua monofuncionalidade e recorte social evidente. Eu ainda não tinha ouvido falar em segregação urbana, mas já vivenciava essa situação, e ela me intrigava.
Daí foi um passo para a escolha por estudar urbanismo, arquitetura...
Sim. Em 1999 entrei na FAU-USP e depois, já formada, trabalhei um período na Prefeitura Municipal de São Paulo, projetando áreas verdes livres públicas e outros equipamentos. Essa experiência me deu a noção de que, para estimular o uso e a apropriação do espaço público, é preciso qualificar esse espaço pelo desenho urbano, e atuar para que a relação público-privado seja mais harmônica. Em São Paulo as casas e edifícios mantêm uma relação de ruptura com a rua, e o excesso de muros e grades faz com que esse diálogo seja truncado. As pessoas evitam as ruas para se protegerem da violência urbana, mas é preciso ter consciência de que o abandono do espaço público também contribui para deixá-lo mais perigoso.
Como surgiu a oportunidade de estudar na Espanha?
Em 2015 comecei a pesquisar oportunidades de bolsas para doutorado sanduíche Erasmus Mundus, até descobrir uma modalidade de bolsa para brasileiros debruçados sobre temas como Smart Cities e desenvolvimento sustentável. Escolhi a Universidade Politecnica de Madri, onde a abordagem era mais próxima de minha pesquisa. Foi trabalhoso; e eu nem falava espanhol! Tive que aprender muito rapidamente. Mas afinal, valeu a pena. Estou no Centro de Inovação em Tecnologia para o Desenvolvimento Humano (ItdUPM), um centro de pesquisa interdisciplinar com foco em projetos de inovação social e tecnológica. Além disso, estou vivenciando uma cidade com alto grau de urbanidade, cujo desenho urbano e condições de mobilidade propiciam o máximo de interações sociais no espaço público. Aprendo, dentro e fora da universidade.
Desenho urbano e interação social no espaço público. Foto: Mariana Guerra
O que essa vivência no exterior pode acrescentar à sua formação? E na atuação profissional no Brasil, ao retornar?
Nas últimas décadas nós brasileiros perdemos o costume de valorizar o espaço público de convivência. Esse fato é atribuído ao aumento da violência urbana e à degradação dos equipamentos públicos, mas a discussão é muito mais complexa.
Isso acontece inclusive na formação dos arquitetos e urbanistas. Nossas faculdades de arquitetura dão muita atenção ao projeto do edifício, e pouca ao desenho dos espaços livres públicos. Também há pouca discussão do que seria uma boa relação entre espaço público e privado, do ponto de vista do pedestre. No atual quadro de crise da democracia no Brasil, é fundamental valorizar o espaço público de convivência, e nós arquitetos temos que saber usar as ferramentas de desenho para qualificar esse espaço. Espero poder aprimorar meu conhecimento no uso dessas ferramentas com esta passagem pelo exterior.
Espaço público de convivência, em Madri. Foto: Mariana Guerra
Como se desloca na Espanha? Acha que a mobilidade urbana sustentável contribui para melhorar a vida nas cidades?
Em Madri faço praticamente tudo a pé e de metrô. É uma cidade concentrada, e os usos de moradia, comércio e serviços são misturados. No meu bairro há praticamente tudo, e se eu me desloco muito é porque gosto de estar na rua, conhecer lugares e visitar as pessoas. Muitas vezes faço o trajeto casa-trabalho a pé. São 45 minutos de caminhada para chegar à Universidade, que fica mais ao norte da cidade, mas a caminhada é cheia de atrativos, e compensa, mesmo com o clima frio que faz na maior parte do ano.
Quando estou com pressa uso o metrô. Nunca usei carro aqui, mas se precisasse poderia utilizar o "Car2Go", um sistema de compartilhamento de carros daqui que funciona muito bem. Resumindo: a cidade oferece muitas opções para as pessoas não precisarem de carros. Entre os madrilenos que eu conheço, bem poucos têm carro.
Para quem opta por caminhar, que benefícios você acredita ver?
Os meios não motorizados de locomoção são positivos do ponto de vista da saúde, da economia doméstica, da diminuição da emissão de gases tóxicos, e outros. Quem se desloca a pé e de bicicleta também mantém uma relação melhor com a cidade. Jan Gehl [arquiteto dinamarquês], em seu livro Cidades para Pessoas, explica como a cidade de 60 km/h é diferente da cidade dos 5 a 20 km/h. À medida que a velocidade aumenta, a capacidade de enxergar detalhes e interpretar estímulos sensoriais cai drasticamente. Logo, o desenho das ruas e fachadas muda sensivelmente. Então, o modo como as pessoas se deslocam também deve contribuir para o desenho da cidade. É claro que essa discussão também se reporta à forma urbana; uma cidade muito dispersa dificulta a mobilidade sustentável.
Qual a sua expectativa com o blog Mobilize Europa?
Não pretendo usar o blog para fazer comparações do tipo "olha como aqui é melhor" (risos). É preciso ter cuidado quando falamos de contextos diferentes, no caso uma metrópole de um país europeu e outra da América Latina, cujo salto de urbanização ocorreu concomitante ao processo de industrialização e o avanço do rodoviarismo.
Mas os problemas de mobilidade aqui na Europa não são muito diferentes dos que estão sendo discutidos em São Paulo agora. O mundo ocidental parece estar revendo sua opção pelo automóvel particular como principal meio de deslocamento e, para isso, começa a repensar o desenho e a organização espacial da cidade.
Mas que tipo de assuntos pretende abordar?
No blog, quero falar um pouco dos novos planos de mobilidade sustentável que estão sendo feitos em algumas cidades europeias, e como estão sendo recebidos pela população. Gostaria também de contar minhas experiências como pedestre e ciclista por estes lugares. Antes de tudo, quero estimular as pessoas a usarem o espaço da cidade mais diretamente, não só quando estão viajando a turismo, mas principalmente em sua própria cidade. Como disse, acredito que um dos primeiros passos a serem dados para tornar ruas e calçadas mais seguras e interessantes é sua apropriação pelas pessoas.
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