A sociedade ainda menospreza o caminhar. Assim como é feito com o transporte coletivo, ele é prioridade nas gestões desde que não incomode o automóvel. A inferiorização do caminhar está por toda parte, espalhada em diversos exemplos. Um deles é a forma como os gestores calculam o tempo de travessia de pedestres nas vias das cidades.
“Quando é para definir o tempo de verde semafórico para os veículos, é feita a contagem da quantidade que passa naquele ponto. Mas quando o cálculo é para definir o tempo destinado à travessia de pedestres, não é contabilizado o número de pessoas que atravessam ali. A contagem é pelo tempo que o caminhante leva para percorrer a distância de um ponto a outro da via”, critica Meli Malaesta, arquiteta e urbanista referência em mobilidade a pé no Brasil e presidente da Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da Associação Nacional de Transportes Públicos.
“A cultura da inferioridade sempre cercou a caminhabilidade”, apregoa com a propriedade de quem atuou na CET (Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo) por 35 anos. Mas por que os técnicos consideram o volume de veículos e desconsideram o de pedestres? “Essa é a grande pergunta que precisamos fazer para todos. Porque, na essência, o caminhar é visto como algo inferior, das pessoas sem recurso, sem status, pobres. Essa inferiorização é cultural e está presente nos órgãos de trânsito. Daí sempre termos a impressão de que o tempo de travessia nas vias é pouco”, reforça Meli Malaesta, que também tem um blog no Mobilize, o Pé de Igualdade.
Confira vídeo com Meli Malaesta:
Para explicar de forma simples e rápida, a mobilidade a pé está entre a cruz e a espada. Especialmente no Recife, que têm legislação própria sobre o assunto, assim como a maioria das grandes cidades e capitais do país. A legislação obriga o proprietário do lote a fazer, refazer e manter as calçadas em frente ao seu imóvel, mas não fiscaliza a desobediência flagrante por toda parte. Ao mesmo tempo, também não cumpre sua obrigação, de cuidar dos passeios públicos e dos lotes oficiais – o que desestimula o cidadão a obedecer a lei. Porque eu iria fazer se a prefeitura não faz? E isso porque não estamos falando das outras necessidades do caminhar: travessias seguras, iluminação, arborização e acessibilidade geral. Apenas as calçadas.
Na prática, o município não tem fôlego operacional para cumprir seu papel e, por isso, fecha os olhos ao descumprimento da lei. Por isso, há tanto tempo o caminhar virou uma disputa de transposição de obstáculos. A Prefeitura do Recife, por exemplo, não soube sequer informar quantas multas já aplicou pela não manutenção de calçadas na cidade. E se o filtro for o de estabelecimentos residenciais, é ainda mais difícil. Disse apenas que a Secretaria-Executiva de Controle Urbano do Recife (Secon) emitiu, desde o início da gestão, mais de 45 mil notificações por uso indevido de área pública, que incluem ocupações, má conservação ou construções irregulares.
Confira o vídeo com Sílvia Cruz, presidente da ONG Corrida Amiga e também integrante da Comissão Técnica de Mobilidade a Pé da ANTP:
Em 2013, no primeiro ano do atual governo do Recife, a promessa era requalificar 100 km de calçadas e largos públicos. O projeto começou a ser negociado com o governo federal – via empréstimo da Caixa Econômica Federal (CEF) –, mas não vingou. Somente em agosto de 2015, enfim, o contrato foi assinado e a prefeitura voltou a prometer executar o mesmo plano, agora um pouco maior, prevendo a requalificação de 134 quilômetros de calçadas e 56,3 mil metros quadrados de largos, ao custo de R$ 105 milhões. O bom é que, diante da necessidade, a gestão municipal fez escolhas estratégicas para a cidade, selecionando corredores viários com grandes equipamentos públicos.
Antônio Alexandre, secretário de Planejamento Urbano do Recife, garante que o município está tentando acertar, mas reconhece a dificuldade até para fazer a lei ser cumprida. “Não podemos sair multando as pessoas se não fazemos a nossa parte. Precisamos primeiro mudar a cultura da infraestrutura do automóvel implícita há anos e anos tanto na sociedade como no poder público. Temos programas de financiamento do governo, como o PAC Pavimentação, por exemplo, que não prevê a requalificação de calçadas. Estamos revendo a nossa legislação e a proposta será uma gestão compartilhada, mas dando prazos para que a sociedade se adapte”, promete.
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