Há um ano, Meli Malatesta voltava de uma aula de pilates quando pisou em falso em um terreno irregular, caiu e quebrou o tornozelo. Era início da noite e a superfície, que parecia plana, escondia um desnível. Arquiteta e urbanista, doutora em mobilidade, com 35 anos de serviços prestados à Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET), sua história, publicada em seu blog Pé de Igualdade e recontada na entrevista para esta matéria, lança luz a um tema com desafios crescentes e soluções ainda tímidas, as calçadas no Brasil.
Em grande medida, a falta de segurança desse caminhar nas cidades brasileiras vem de uma equação nem sempre simples de resolver: a responsabilidade dividida entre o poder público e os proprietários dos imóveis. Nos grandes centros, na maior parte das vias, a construção e a manutenção das calçadas em frente ao lote é feita pelo munícipe, o dono. Cada prefeitura tem sua legislação e a ela cabe criar cartilhas, padronizações, indicações de material para a construção e a fiscalização.
Com pouca difusão de informação e um histórico de valorização do transporte individual, o resultado é uma diversidade de pavimentos entre um vizinho e outro. Sem contar as irregularidades como degraus em vias inclinadas ou até mesmo interrupção de calçadas, dificultando a circulação de cadeirantes, pessoas com carrinhos de bebês e idosos.
Exemplo citado com frequência por urbanistas, a cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo, implantou, em 2010, o Programa Calçada Segura. Com ele, não apenas determinou os novos padrões das vias para pedestres, com segurança e acessibilidade, como previu e planejou uma rede de colaboração. "Treinamos agentes comunitários para falar de cidadania e de conscientização sobre o tema, fizemos parceria para a formação de profissionais para a construção das calçadas, os calceteiros. Também limitamos o uso de materiais: concreto moldado no local ou pavimento intervalado. Além da padronização, os dois materiais são de fácil manutenção e custo acessível", diz Rony Pereira, coordenador do programa.
Foi justamente pensando em uma padronização das ruas do Rio de Janeiro, que o arquiteto e urbanista Alexandre Pessoa, professor de Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez um estudo com quatro cidades: Buenos Aires, Londres, Nova York e Bogotá. Dois pontos chamam atenção: a qualidade dos passeios e a divisão entre poder público e munícipes parecidos com o Brasil. "Em Nova York, o munícipe também é o responsável, a prefeitura funciona como uma agência reguladora dando informações claras e padronizando os materiais", diz.
Na Colômbia, Bogotá transformou-se em exemplo de sucesso no quesito mobilidade urbana. Ao lado do investimento em transporte público coletivo e o incentivo ao uso de bicicleta, com ampliação e construção de ciclovias, os passeios foram reformados pelo poder público e depois passaram para a responsabilidade dos munícipes.
No Brasil, o Programa Nacional de Mobilidade Urbana instituído pela Lei Federal da Mobilidade Urbana, em 2012, sinaliza um passo importante. Oferece diretrizes para as grandes cidades e prioriza o transporte coletivo público e as modalidades não motorizadas. Essa medida já pode ser vista na elaboração do Plano de Mobilidade, PlanMob, em 2015, de São Paulo, que projeta as ações nos próximos anos para o município.
Plano de Calçadas
Também na capital paulista, em 2008, o Plano Emergencial de Calçadas (PEC) incluiu em suas responsabilidades a manutenção das vias de maior circulação de pedestres como pontos de transporte coletivo e serviços públicos e privados, padronizando passeios como o da Paulista.
"Nossas cidades, durante muito tempo, valorizaram o carro. As calçadas foram negligenciadas. É sempre o que dá para fazer, sem muito planejamento", afirma Ana Paula Lepori, arquiteta e urbanista, consultora em políticas públicas nas áreas de mobilidade, desenvolvimento urbano, entre outros.
Nesse "território de conflitos", nas palavras de Gabriela Callejas, arquiteta e urbanista, cofundadora do Cidade Ativa, ela lembra que as calçadas sofrem ainda interferência de outros agentes, como as concessionárias de luz, gás, telefonia, por exemplo, que quebram as calçadas e na hora de refazer, muitas vezes, as deixam com trincas e desníveis.
A calçada é vista pelos entrevistados como a primeira experiência com a mobilidade. Ainda que haja uma divisão de opiniões na distribuição de tarefas — uns acreditam que o poder público deveria assumir a responsabilidade pelo passeio, como fazem pelas ruas; outras acham que isso é impossível dentro de um orçamento —, todos concordam que calçadas bem cuidadas significam um passo fundamental na urbanização.
Em 2012, a organização Mobilize Brasil lançou uma campanha e fez um estudo de grande repercussão sobre a situação das calçadas em doze capitais. Avaliação seguia alguns critérios: irregularidades no piso; largura mínima de 1,20 m, conforme norma ABNT; degraus que dificultam a circulação; outros obstáculos, como postes, telefones públicos, lixeiras, bancas de ambulantes e de jornais, entulhos etc.; existência de rampas de acessibilidade; iluminação adequada da calçada; sinalização para pedestres; paisagismo para proteção e conforto.
Em uma escala de zero a dez, a média das calçadas foi 3,40. "As notas foram baixas, mas pouquíssimas administrações continuam com ações contínuas para melhorar a mobilidade nesse modal", analisa Marcos de Sousa, editor de estudo. Em 2017, a previsão é de que uma nova edição seja lançada, mostrando as ações feitas e os novos e antigos desafios.
Leia também:
Em Goiânia, projeto de lei prevê novos padrões de calçadas
Cadeirante se revolta com calçada sem acesso e faz rampa em Campinas
SP arrecadou apenas 1,4% das multas aplicadas pela Lei das Calçadas
Calçadas do Brasil - Relatório final -2ª Ed. - Janeiro 2013