Carros são o meio de transporte padrão em milhares de cidades ao redor do mundo.
E os assentamentos humanos são dominados por essa "automobilidade", um sistema interligado de carros, ruas, avenidas e estradas, infraestruturas de abastecimento, empresas de automóveis, seguradoras, bancos, políticas governamentais, além de agências de publicidade e revistas especializadas que criaram um culto ao automóvel. No entanto, existem apenas 16 carros para cada 100 pessoas no planeta, conforme dados de organizações da indústria*.
Curiosamente, os trens, ônibus, bicicletas, cadeiras de rodas e até os nossos próprios corpos são classificados como modos "alternativos" de transporte.
As constatações resultaram de uma ampla pesquisa elaborada por uma equipe multidisciplinar de especialistas da Alemanha e Reino Unido, e publicado no " Journal of Transport Geography".
Segundo a pesquisa, algumas poucas pessoas se beneficiam da condição de usuários de carros, mas quase todos os habitantes do planeta – quer dirijam ou não – são muito prejudicados por esse modelo carrocentrista. Os autores do artigo descobriram que, desde a sua invenção, os automóveis mataram entre 60 e 80 milhões de pessoas e feriram pelo menos 2 bilhões de pessoas em todo o mundo. E atualmente, uma em cada 34 mortes que ocorre no planeta é causada pela automobilidade.
No entanto, apesar dos danos generalizados causados pelos veículos automotores, os governos, empresas e indivíduos continuam a facilitá-los, expandindo estradas, fabricando veículos maiores e subsidiando estacionamento, carros elétricos e a extração de recursos, como o petróleo ou os minerais necessários para a produção de baterias.
No texto, os pesquisadores mostram que os automóveis (sedans, SUVs, 4x4s, picapes, vans e táxis) exacerbaram as desigualdades sociais e danificaram ecossistemas em todas as regiões do mundo, incluindo em locais remotos, sem automóveis.
Os pesquisadores agruparam os danos causados pelo automóvel em quatro categorias:
+ Violência (colisões e violência intencional);
+ Problemas de saúde gerados pela poluição, sedentarismo, dependência do carro e isolamento social;
+ Injustiça social, como a distribuição desigual de danos, inacessibilidade a alguns serviços para quem não usa carros, e consumo de espaço, tempo e recursos naturais pelo modelo carrocrata; e
+ Danos ambientais, como as emissões de carbono, poluição, extração de recursos minerais e uso da terra.
No documento os autores também resumiram algumas intervenções que deveriam ser adotadas por governantes e que poderiam reverter esse processo. São medidas óbvias, já adotadas em alguns países do mundo, mas que indicam uma mudança de ciclo: em vez de estimular, os governos devem agir com urgência para reduzir as facilidades dadas aos motoristas e estimular as formas de transporte com baixo impacto: caminhar, pedalar e usar o transporte público. Parece simples, mas há uma enorme teia de interesses econômicos que atuam no sentido contrário.
Exemplos de ações para reduzir danos gerados por carros:
Intervenções
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Resultados
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Locais/exemplos
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Estudos
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Taxas de congestionamento e pedágios urbanos
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Redução de poluição; mais espaço para transporte coletivo e bicicletas
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Londres, Singapura e Estocolmo
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(Goh, 2002; Kuss and Nicholas, 2022)
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Redução de vagas de estacionamento nas ruas
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Mais espaço para caminhar, pedalar e rodar com cadeiras de rodas
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Barcelona, Oslo e Paris
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(Johansson et al., 2022; Kuss and Nicholas, 2022)
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Áreas sem carros ou com tráfego controlado
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Redução de sinistros de trânsito, poluição do ar e ruído urbano
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Fez, no Marrocos, Kigali, em Ruanda e Veneza
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(Kalisa et al., 2022; Nieuwenhuijsen and Khreis, 2016)
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Redução de velocidade do trânsito
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Menos sinistros de trânsito e menor letalidade
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Belfast e Edimburgo, no Reino Unido
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(Milton et al., 2021)
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Fixar número máximo (e não mínimo) de vagas em edificações
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Menor custo para bens e serviços, como habitação
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Boston, Londres e Seul, na Coréia
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(Guo and Ren, 2013; Hess and Rehler, 2021)
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Converter estacionamentos em habitação ou lojas
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Increase in housing availability and affordability
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Los Angeles (EUA) e Estocolmo, na Suécia
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(Brown et al., 2020; Johansson et al., 2022)
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Ciclovias, ciclofaixas e ruas abertas
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Espaços seguros para caminhar, rodar em cadeiras de rodas e pedalar
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Bogotá, Jacarta, na Indonésia, Kigali, em Ruanda, Nairobi, no Quênia e Pune, na Índia
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(Adam et al., 2020; Sheller, 2018; Subramanian et al., 2020)
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Bicicletas elétricas para pessoas e cargas
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Circular em longas distâncias e transportar cargas sem carros
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Kunming e Shanghai, na China
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(Fishman and Cherry, 2016; Philips et al., 2022)
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Car sharing (compartilhamento de carros)
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Redução de tempo ocioso de carros.
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Beijing, na Chima e Malmö, na Suécia
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(Sun and Ertz, 2021; Svennevik et al., 2021; Vélez, 2023)
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* Nota: Os dados sobre a frota de carros foram levantados em relatórios da Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis, 2021; Organização Internacional de Fabricantes de Veículos Motorizados, 2017; Centro Nacional de Estatísticas do Japão, 2022; e Organização Mundial da Saúde, 2018.