Como escapar da barbárie motorizada nas ruas do país
Quem já leu El Aleph, do escritor argentino Jorge Luis Borges, deve lembrar da história do comandante bárbaro Droctulft, que por volta do ano 569 invadiu a cidade de Ravena, na Itália e, ao ver as belezas daquele ambiente construído, mudou de lado e morreu para defendê-la. Droctulft - conta Borges - ficou encantado pelas estátuas, jardins, fontes, aquedutos e anfiteatros, mas sobretudo por encontrar um ambiente de convivência pacífica, de segurança e respeito entre os cidadãos.
Cidades são uma grande conquista da espécie humana e hoje são fundamentais para a nossa sobrevivênvia. Basta lembrar que 70% da população da Terra vive hoje em espaços urbanos. No Brasil, essa concentração já chegou a 85%, o que significa que somos 170 milhões de brasileiros vivendo em cerca de 23.000 km2.
Cidades precisam ser preservadas contra as várias barbáries contemporâneas, entre elas a invasão de milhões de veículos motorizados em ruas, calçadas e praças originalmente concebidas para o desfrute de todos.
Há mais de 40 anos, o engenheiro Sam Schwarz, de Nova York, já percebia essa perversão de valores e tentava afastar os carros das ruas de Manhattan. Schwarz planejou faixas exclusivas de ônibus, ciclofaixas e pequenas praças em locais ocupados por carros estacionados. Nada deu certo, principalmente porque a opinião pública não estava preparada para tantas novidades. Como se sabe, as mesmas medidas foram adotadas a partir de 2006, na gestão do prefeito Bloomberg e mudaram radicalmente o panorama na metrópole americana. Hoje já se sabe que não adianta alargar avenidas, fazer viadutos ou ampliar estacionamentos, porque em pouco tempo tudo estará repleto de carros, motos e outras traquitanas motorizadas.
Semana passada estivemos em Campina Grande, na Paraíba, para participar do Seminário Cidade Expressa, fórum anual onde se discute a implantação das medidas previstas no Plano de Mobilidade da cidade. Campina Grande foi exemplar na elaboração de seu Planmob, mas parece estar patinando para torná-lo realidade. Há muito asfalto em novas ruas e pouco cimento em calçadas ou ciclovias. Também não é muito fácil usar o transporte público da cidade, uma das mais ricas do Nordeste.
Como resultado, a frota de carros e motos campinense ultrapassa 126 mil unidades, em uma localidade com menos de 500 mil habitantes. É um círculo vicioso, que gera congestionamentos, doenças, acidentes, violência e degradação urbana, além de muito desperdício de tempo e dinheiro. Enfim, a morte das cidades.
O que falta para a mudança real em Campina Grande e na maioria das cidades brasileiras? Talvez um pouco da ousadia e coragem do jovem Sam Schwarz de 1970, ou o desprendimento do bárbaro Droctulft do século VI.
Marcos de Sousa
Editor do Mobilize Brasil