A maioria das pessoas não tem noção da importância das calçadas na vida delas, mesmo quando se trata de pessoas que pouco caminham. Elas esquecem que na maioria das vezes são calçadas que decidem se vão ou não atingir seus destinos. Dependendo de estarem bom ou mau estado, serem confortáveis ou trepidantes , corrugadas ou escorregadias é possível atingir a tempo e com integridade os destinos do dia a dia.
Quando surge uma ocasião para se discutir o futuro das nossas calçadas, pela sua importância, a data deveria ser digna de um feriado nacional. Todos pararem seus afazeres e direcionarem a atenção e energia para participar do processo. E quando se fala “todos”, é todo mundo mesmo: gestores públicos, tomadores de decisão, formadores de opinião, representantes de entidades de interesse social, caminhantes, pessoas com deficiência, pessoas com mobilidade restrita, ciclistas, motoristas, passageiros de trem, metrô, ônibus, condutores de carrinho de bebê e de feira.
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Assim, a construção de um instrumento legal definidor dos “critérios para a padronização das calçadas” e regulamentador do conteúdo das principais leis federais, municipais e de outras normas afetas, deve sempre ser um processo aberto e contar com a participação dos de todos os setores da sociedade. Isso ocorreu na cidade de São Paulo quando foi estruturado o Plano Diretor Estratégico (2014) e do Plano Diretor de Mobilidade (2015). Ambos servem de ao novo decreto de calçadas e deram origem à Comissão Permanente de Calçadas. Entretanto a construção deste decreto foi desenvolvida somente pela Comissão Permanente de Calçadas, um grupo intersecretarial fechado, sem contar com a participação popular.
Após um período de trabalho de aproximadamente 18 meses este grupo produziu uma minuta de decreto para regulamentar a padronização das calçadas em São Paulo. Este instrumento legal foi colocado para consulta pública, inicialmente, por um exíguo prazo de 10 (dez) dias, posteriormente prorrogado para mais 15 (quinze), após veementes protestos de várias entidades de representação social. Mesmo assim ainda é muito pouco tempo para avaliar um conteúdo complexo, importante e tão poderoso para a vida das pessoas.
Reunião da Comissão Permanente de Calçadas | Foto: Estadão
De saída, pela redação proposta pela minuta do decreto, será exigido do cidadão que deverá colocá-lo em prática, um árduo trabalho pela frente. Além da leitura e interpretação dos artigos, caberá a ele garimpar uma abundância de trechos de outros decretos e leis municipais, além de extensas Normas ABNT[3]. Estas são frequentemente referenciadas no documento de forma genérica sem haver a necessária especificação exigida para o cumprimento. Mesmo se for mencionado o número da norma, não será tarefa fácil para o público leigo sua leitura integral toda vez que quiser construir e consertar suas calçadas. De grande serventia seria o decreto contar com o acompanhamento de um documento anexo contendo uma coletânea dos trechos da legislação e normas referenciados pelos diversos artigos em que são mencionadas. Fartura nas ilustrações com os detalhes das normas também ajudaria muito ao público no acerto das suas obrigações instituídas por este decreto.
Também gerou dúvidas o formato proposto para solucionar calçadas com largura menor do que o mínimo instituído pelo decreto. A redação pareceu aceitar situações de calçadas com 80 cm sem qualquer tipo de intervenção de alargamento demandada pela intensidade do fluxo a pé que dela se utiliza. Por outro lado no caso de se partir para um alargamento, ignorou-se a condição do coroamento da pista veicular onde se daria o alargamento, o que poderia resultar numa declividade transversal do trecho alargado superior aos 3% regulamentados. Temos esta situação em trechos de calçada alargada na R. 7 de Abril, por exemplo.
Se observa na linguagem da redação alguns ruídos de comunicação, com pontos incompletos e conceitos de interpretação genérica. Outro ponto que preocupa são várias diretrizes que comprometem uma desejada autonomia no processo de estruturação das calçadas por remetê-lo, constantemente, à dependência de consulta à prefeitura regional e à própria CPC. Estas, mesmo se contarem com todo o empenho de seus membros, não tem estrutura para atender e esclarecer dúvidas ou solucionar situações atípicas dos quase 34 mil quilômetros de calçadas [4] paulistanas. Portanto melhor seria se o decreto desse conta de indicar mais diretrizes para resolver essas exceções.
Pontos positivos
Por outro lado o decreto apresenta pontos positivos como a exigência de faixa livre tomando metade da largura de calçadas com mais de 2,50 m de largura total. Essa diretriz resolve um vício do decreto anterior que penalizava os fluxos a pé. Ao instituir 1,20 m como largura mínima de faixa livre acabou tornando-a medida padrão para toda e qualquer situação de intensidade de ocupação da calçada por fluxos a pé, independentemente de estar acomodando em condições de eficiência e segurança esses fluxos. Outro ponto é a intensificação do rigor na extensão e localização dos rebaixamentos de guia para acesso veicular, particularmente válidos para postos de gasolina, puxados do Código de Obras.
Por último, alguns pontos geraram dúvidas: e o enterramento da fiação? A locação do comércio ambulante? Não seriam assuntos para constar também deste decreto?
Enfim, entre dúvidas e acertos se estrutura este importante instrumento legal de política pública para estímulo e priorização à Mobilidade a Pé. Ainda há muito a ser feito e esperamos que desta vez com a almejada participação dos setores da sociedade que certamente colaborarão trazendo muita qualidade .
[1] Projeto de Decreto elaborado pela Comissão Permanente de Calçadas e submetido à consulta pública de 20 de junho a 5 de julho de 2018 pela PMSP
[2] Nome inspirado na obra da Jane Jacobs de 1961: Morte e Vida das Grandes Cidades – Editora Martins Fontes, 2001
[3] Associação Brasileira de Normas Técnicas
[4] Observação baseada em dado da CET sobre a extensão do sistema viário do município de SP estimada em 17 mil quilômetros