Com muita satisfação vemos que a Mobilidade a Pé tem tido o justo reconhecimento de sua importância nas políticas públicas em todos os escalões de governo, na produção técnica de órgãos públicos e instituições não governamentais através da criação ou melhoria de legislação, desenvolvimento de conceitos e metodologias que objetivam trazer para as cidades brasileiras experiências de sucesso em outras realidades urbanas.
Ao mesmo tempo organizações sociais formadas em outros movimentos reivindicatórios, como preservação do meio ambiente, saúde e hábitos saudáveis, uso urbano da bicicleta, apropriação e valorização de espaços públicos, inspiraram e colaboraram para estruturar o surgimento da militância pelo direito à mobilidade a pé com qualidade nas cidades brasileiras.
Entretanto, e apesar de todo este processo, é visível no cenário urbano brasileiro a condição de precariedade do exercício da caminhada. As poucas tentativas de se reverter isto são extremamente pontualizadas, mostrando o abissal descompasso existente entre o intencional e o real. Resta a sensação de que o mínimo de qualidade exigido para se caminhar com dignidade em nossas cidades jamais será atingido.
Já é mais do que sabido o papel de privilégio do modo motorizado individual nas políticas de governo voltadas às formas de uso dos espaços públicos destinados à mobilidade. Até mesmo nas poucas oportunidades de se priorizar o transporte público coletivo, as estruturas resultantes sempre trabalharam direcionadas para atender integrações modais contemplando as próprias redes de transporte. Na grande maioria das vezes esquecem-se de que o sistema é alimentado basicamente por pessoas, caminhando ou pedalando.
A Lei Federal da Mobilidade Urbana (12.587/2012) que institui o Programa Nacional de Mobilidade Urbana, declara em seu corpo prioridade aos Modos de Transporte Não Motorizados. Entretanto não especifica diretrizes para garantir e viabilizar esta prioridade. Assim seus produtos, planos diretores de mobilidade urbana, perdem a valiosa oportunidade de estruturarem redes das várias modalidades integradas entre si.
O próprio entendimento da caminhada como forma de mobilidade que também ocorre em rede, a Rede da Mobilidade a Pé, normalmente não compreendida e dificilmente executada como tal por técnicos, especialistas e por tomadores de decisão. No máximo predomina o enfoque isolado de seus componentes, em especial calçadas (ou passeios). Ora, calçadas se sucedem em trechos e se não for considerada a articulação e continuidade entre estes trechos nos pontos de travessia da rede dos veículos não há trajeto a pé possível nas cidades.
Calçadas públicas ou privatizadas?
No entanto, ao contrário do que ocorre com redes destinadas aos veículos, que estão inteiramente sob responsabilidade do poder público, as Redes de Mobilidade a Pé possuem vários donos. As calçadas ou passeios, por exemplo, são o primeiro exemplo de estrutura de mobilidade urbana administrado por uma mal sucedida Parceria Público-Privada.
Este modelo de gestão tão em moda atualmente e tão almejado por muitas administrações municipais tem mostrado o seu pior lado quando se trata de calçadas . Ele estipula, na grande maioria das cidades brasileiras, que a construção, reforma e manutenção fique por conta da iniciativa privada (proprietário do lote privado contíguo), cabendo à prefeitura definir parâmetros básicos sobre como fazê-lo o e fiscalizar o seu cumprimento. Entretanto o fracasso deste modelo de parceria reside no fato de que ninguém cumpre a sua parte: o morador não se preocupa em fazer a calçada frente ao seu lote apta a receber pessoas caminhando e o poder público não se estrutura para fiscalizar e garantir que isto ocorra.
Da mesma forma este modelo de parceria pode ser apontado como um dos responsáveis pela dificuldade de entendimento sobre o que é público e privado nos espaços de mobilidade. Assim é usual se observar um comportamento de posse e privatização dos espaços de caminhada manifestados sob as mais diversas formas, todas elas desrespeitando, descaradamente, o direito de ir e vir a pé das pessoas. Pelo suposto direito de resolver na rede da caminhada aspectos arquitetônicos que deveriam ter sido solucionados no interior do lote, nossas calçadas sofrem uma verdadeira invasão de sucessivos obstáculos que impedem o seu uso para a função para a qual elas foram definidas. Este o caso mais comum, mas há também outros exemplos igualmente danosos.
Com o objetivo de reverter esta situação tomadores de decisão e a sociedade em geral têm pensado que esta desastrosa experiência de PPP precisa ser deixada de lado, redirecionando os mecanismos legais para a total responsabilidade da calçada pelo poder público. Vários projetos de lei passam a responsabilidade total da calçada à prefeitura por entenderem que esta decisão parece ser a mais adequada para se garantir a existência de uma Rede da Mobilidade a Pé.
# Estariam as estruturas organizacionais das prefeituras adequadas para se responsabilizarem totalmente pelas calçadas?
# O necessário incremento de recursos humanos e materiais deverão ser bancados com o aumento do imposto territorial urbano, ou o redirecionamento de recursos decorrente da readequação de prioridades?