Desculpem meu pessimismo e mau humor por ocasião de mais um mês de setembro repleto de eventos e inaugurações para lembrar como é importante investir na mudança de paradigmas… Mas penso que está mais do que na hora de fazer algo se quisermos reverter o cenário de guerra representado pelas mortes no trânsito, mortes que atingem sobretudo o usuário mais vulnerável do espaço público da mobilidade, o pedestre.
Em cidades como São Paulo, a distribuição do espaço é extremamente injusta: destina-se somente 20% dele para acomodar 2/3 das viagens cotidianas que envolvem deslocamentos a pé (1/3 totalmente a pé, mais 1/3 a pé para complementar as viagens de transporte coletivo). E os 80% restantes são ocupados pelos 1/3 que circulam em veículos.
O resultado disso é o nocivo e perigoso senso de que ruas foram feitas para os condutores dos automóveis. Potencializando esta injustiça, há ainda o desenho urbano aplicado a nossas vias que deixam claro aos condutores dos veículos motorizados que eles podem trafegar com a velocidade que desejarem – nem que seja para irem de uma parada no semáforo a outra. Assim, não dá para esperar outro resultado que não a alta ocorrência de atropelamentos, que matam mais de uma pessoa por dia, tal como a situação de conflito armado.
Até terroristas já descobriram o poder letal do atropelamento. Elegeram como arma para os últimos atentados jogar veículos em alta velocidade sobre pedestres circulando em calçadas e praças, simulando o comportamento de um veículo desgovernado e em alta velocidade. E, infelizmente, funcionou perfeitamente.
Van utilizada para o atentado terrorista em Barcelona neste ano | Foto: G1 (Globo)
E o registro sistemático destes atropelamentos gera dados estatísticos constantes em bancos como o Infosiga, que fornece, para a maioria deles, local, dia e hora, gênero e faixa etária da vítima. Ao consultá-lo, confrontamos a fria descrição destas tragédias com o sentimento de impotência e indignação. Ao nos colocarmos no lugar dos familiares e amigos das vítimas, fica difícil imaginar como prossegue o cotidiano de quem passou e continua convivendo com estas devastadoras experiências.
Como estarão as pessoas próximas à menina entre 0 e 17 anos, e a moça, entre 17 e 24 anos, ambas mortas atropeladas no mesmo local, a avenida Utaro Kanai, em frente a uma escola e a um ponto de ônibus na Zona Leste paulistana? As duas ocorrências foram à noite e em outubro de 2016. Será que estavam juntas? Ou foram dias e horários noturnos diferentes? Estavam atravessando a via ou estavam na calçada, quem sabe aguardando a chegada do ônibus? O banco de dados não fornece mais detalhes, mas mesmo assim permanece a indignação de vidas perdidas de modo estúpido e evitável.
Mapa Infosiga com os atropelamentos de 2016
Detalhe do banco de dados do mapa do Infosiga com informações das vítimas
Algumas medidas para reverter a situação de predomínio do espaço público da mobilidade para o automóvel já têm sido tomadas. Uma delas é a reprodução do modelo novaiorquino de ampliação de calçadas em pintura verde, em locais onde a largura das calçadas não é suficiente para acomodar o fluxo a pé. Mas ainda é só o início, e ainda há muito a ser feito para esvaziar este trágico banco de dados do Infosiga.
Rua Joel Carlos Borges, em SP: Antes e depois da ampliação de calçada | Fotos: Urb-i e Meli Malatesta
E dá para acreditar que isso é possível, ao vermos como era Amsterdã em meados dos anos 1970 e como é hoje, após a tomada de consciência da sociedade que exigiu do poder público que a cidade fosse redesenhada para as pessoas e para a vida.
Assim, torço para que nas próximas Semanas da Mobilidade e Dias Mundiais sem Carro tenhamos realmente o que comemorar, com alívio e alegria.
Amsterdã nos anos 1970 e hoje Fotos: NL Ciclism
Protestos realizados na Holanda nos anos 1970, após aumento do atropelamento de crianças Foto: NL Ciclism